Opinião
É dever de todo comunista defender a revolução da Coreia Popular
Por Bernardo Muratt (*)
Um relato de viagem indispensável a quem deseja conhecer sem preconceitos nem falsidades a República Popular Democrática da Coreia, escrito por um membro da delegação que visitou o país asiático em julho deste ano, a convite da Associação Coreana de Ciências Sociais. A delegação de acadêmicos de Política e Relações Internacionais e ativistas da Solidariedade e Paz foi organizada e liderada pelo Cebrapaz – Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz
Desde que confirmei minha ida à Coreia tinha a ideia de publicar um relato de viagem. Faço isso para sanar as dúvidas e a curiosidade de vários camaradas e companheiros que querem saber o que se passa no país asiático. De outra parte, também realizo esse trabalho com a finalidade de demonstrar que a realidade coreana é extremamente diversa do que nos é transmitido pela mídia ocidental e pelos países imperialistas. Agradeço, desde já, a disponibilidade e o convite do Portal Resistência, através do camarada José Reinaldo Carvalho, para a publicação deste testemunho. Também é necessário agradecer ao Cebrapaz e à Associação Coreana de Ciências Sociais que foram responsáveis, o primeiro, pela organização e, a segunda, pelo custeio da viagem na Coreia. Tenho o dever de lembrar que muito do seguinte relato se baseia na minha experiência própria e não necessariamente vale como regra geral, mas acredito que tenho senso crítico para não misturar alhos com bugalhos. Além do mais, como comunista, minha posição é clara em favor da revolução coreana.
Bom, a primeira dúvida que surge é de como consegui ir à Coreia Popular. É uma dúvida compreensível, uma vez que o país não é um destino usual do brasileiro… Um pouco menos de ano antes da viagem, em agosto de 2018, o Cebrapaz abriu um edital para uma missão acadêmica à Coreia Popular. Tive que mandar um memorial político e acadêmico, explicando porque queria ir e qual a importância desta viagem para minhas pesquisas além de currículo lattes. Na época eu militava no Partido dos Trabalhadores principalmente na área de solidariedade internacional no PT gaúcho, na graduação a economia da Coreia do Sul foi objeto de pesquisa… Enfim, fui selecionado. Os selecionados eram responsáveis pelo custeio da passagem. Os demais gastos como hospedagem e alimentação seriam custeados pela Associação Coreana de Ciências Sociais, como mencionei antes.
Pegamos um voo de Pequim para Pyongyang e na chegada já me surpreendi. O aeroporto é muito novo e limpo, aliás a limpeza seria uma constante em qualquer prédio público que visitei durante minha estádia. Chegando lá fomos recebidos pelo nosso guia Li. Ele falava português foi funcionário da embaixada em Brasília. A partir desse momento fomos levados ao hotel e lá recebemos uma programação para toda a nossa estadia do dia 3 ao dia 15 de julho. Pelo o que comparei com outra viagem, era um itinerário turístico padrão, a diferença é que tivemos aulas sobre a ideologia Juche, que é a ideologia oficial do país. Dito isso, não quero me ater aqui de como foi exatamente a minha estadia, hotel, comida e diversão. Mas gostaria de relatar minhas impressões políticas e sociais do país e, através disso, desconstruir esse mar de desinformação que nos é passado através da mídia ocidental.
Educação na Coreia Popular
Bom, vou falar então de um dos primeiros lugares que visitamos e que me fez não ter dúvidas quanto a defesa de revolução coreana. O palácio das crianças de Mangyongdae. Esse local com 120 sala, piscina, ginásio esportivo e teatro para mais de 2 mil pessoas é o principal palácio pra crianças do país, existe um em cada província. É um local onde os estudantes coreanos podem fazer uma série de atividades extra-curriculares como dança, música, artes, tecnologia e informática e esportes. O local também mostra uma série de obras de artes de alunos que passaram por lá e hoje são famosos na sociedade coreana, os educadores já haviam percebido sua genialidade desde cedo.
Outro lugar que me surpreendeu foi a escola de formação de professores de Pyongyang. Recentemente remodelada, essa faculdade preparatória para professores também demonstra o apreço do governo por educação de qualidade. Nele são utilizados e testados uma série de softwares desenvolvidos no próprio país para educação, os que mais me chamaram a atenção foram um simulador de turma (uma turma virtual dentro de um quadro eletrônico que respondia perguntas do professor e falava em diversas línguas), óculos de realidade virtual e uma série de hologramas interativos.
Temos que contextualizar essa alta qualidade da estrutura física educacional ao forte embargo que o país sofre desde sua fundação. Por mais que hajam dificuldades na área econômica e prioridade do governo é clara. Educação e qualidade de vida. A taxa de alfabetização na Coreia Popular é de 100% de acordo com a UNESCO. No que diz respeito às atividades culturais, a capital do país tem mais de dez teatros (aqui incluo os espaço Mangyondae e a orquestra do país). Fui em dois desses teatros, mas os outros que eu passei estavam quase sempre com grupos de estudantes entrando ou saindo.
A nossa delegação teve sorte de encontrar no mesmo hotel uma delegação do Partido del Trabajo do México. As companheiras que compunham esta delegação eram encarregadas de centros educacionais para milhares de crianças no México. A líder da delegação estava pela quarta vez na Coreia Popular justamente para tomar exemplos e modelos de educação. Elas tiveram a oportunidade de viajar todo o país, afirmado que apesar das outras regiões não terem a mesma estrutura física de Pyongyang, a educação era de alto nível de excelência.
No que tange a minha observação no assunto, pude reparar algumas coisas que podem corroborar as afirmações feitas pelas companheiras mexicanas. Estive em duas cidades Pyongyang e Gaesong e durante a viagem passamos por outras cidades, importante ressaltar que independentemente da infraestrutura das cidades (algumas bem simples com estradas de terra) as escolas e as fábricas eram sempre os lugares mais limpos e modernos ao mesmo nível da capital.
Trabalho na Coreia Popular
Sobre o trabalho: as fábricas, como dito anteriormente, estão sempre em ótimo estado, contem grandes aberturas e janelas. Todas elas tem algum tipo de quadra esportiva dentro da sua estrutura, algumas têm teatros, espaços de lazer, dormitórios e até mesmo escolas para os filhos dos trabalhadores. As três fábricas que visitei tinham laboratórios de computadores onde os trabalhadores estudavam por duas horas após o trabalho, no nível de graduação. Pelo que sei esse processo de educação superior dos trabalhadores começou no governo de Kim Jong Il.
A jornada de trabalho é de oito horas diárias, as mulheres com mais de 2 filhos tem redução para seis horas diárias. As residências dos trabalhadores são, em sua maioria, próximas as fábricas, evitando que se perca tempo do trabalho para a casa (algo que é bem comum nos países capitalistas). Inclusive, ao lado da estação central de Pyongyang estava sendo construído um prédio residencial para os trabalhadores das estações de trem, ônibus e trolleybus, pois eles são uma das categorias que começam o expediente mais cedo. Não custo de habitação no país, as casas são dadas pelo governo. Não há custo de energia, os prédios contem caldeira para o aquecimento e a grande maioria deles conta com painéis solares individuais.
Importância da liderança na política na Coreia Popular
O papel do líder é muito importante na Coreia Popular, tanto no âmbito material quanto ideológico. Historicamente, entende-se a edificação da política coreana em torno de um líder, ao meu ver, em duas questões igualmente importantes: em primeiro lugar, uma questão de segurança. Desde a anexação por parte do Japão em 1910 a península coreana vive em um estado de guerra prolongado. Desse modo, a luta por independência desemboca em uma liderança forte e carismática (a chamada “liderança destacada” da ideologia Juche), Kim Il Sung sobre cumprir bem esse papel; destacou-se já nos anos 1930 na guerrilha anti-japonesa em conjunto com os guerrilheiros chineses. Soube canalizar as demandas populares com os anseios de libertação nacional.
Em segundo lugar, a unidade ideológica do país e do próprio socialismo coreano se devem muito a figura do líder. A ideia Juche, ou a ideia da autossuficiência (também pode ser traduzido como independência), tem na figura do líder aquele capaz de manter a posição independente da nação tanto na ideologia quanto na política interna e externa. Deve-se tomar em conta que a centralização tanto na liderança e na ideologia foi dada em um contexto de dissolução do partido comunista coreano em 1928 numa série de grupos políticos menores. A centralidade, nesse contexto, garante a unidade ideologia e política do país. Isso quer dizer que a Coreia Popular é uma ditadura? Não.
Se considerarmos Maquiavel, sem dúvida há uma questão de virtú e fortuna para Kim Il Sung e seus sucessores. Há uma mistura entre virtuosidade do líder e a liderança e poder das massas populares. Esse enigma, ou melhor, essa contradição é manifestada pela ideia Juche. Na minha opinião ela é uma ideologia “per se” que serve de resposta e justificação ideológica à práxis em determinado contexto político interno e externo. De fato, o povo coreano tem suas demandas atendidas e desfruta de uma qualidade de vida e educação invejável, principalmente se comparado aos demais países da Ásia ou terceiro mundo.
Ao mesmo tempo a figura do líder é exaltada de forma intensa, o que justifica o destino e o direcionamento do trabalho do povo. Esse trabalho pode ser direcionado de acordo com a necessidade do Estado tanto para questões domésticas quanto internacionais. Pelo o que foi apresentado a nós, a construção socialista da Coreia Popular é, de fato, independente. A ideologia oficial também mescla as contradições, ou melhor, as nuances, entra revolução socialista e o movimento nacionalista anti-imperialista com a criação de um mito fundador.
Portanto, tudo pode ser demanda do povo, a voz do líder é a demanda do povo. Dessa maneira todo o trabalho é trabalho popular. A sabedoria do líder se confunde com a sabedoria das massas populares, me parece aí forte influência maoista. Isso pode soar inadequado no plano da aparência sob uma perspectiva democrático-liberal, mas os resultados objetivos desse processo são inegáveis. Se levarmos em conta a pouca materialidade que havia no contexto pós-guerra da Coreia faz sentido que haja uma vertente imaterial de destaque para a manutenção dos objetivos revolucionários, tanto que diversas vezes foi destacado que a ideia Juche dá prioridade à questão ideológica.
De acordo com a professora Dra. Mun Jong Sun, os coreanos maiores de 17 tem direito a votar e ser votados. A participação política vai desde assembleias de bairro até a assembleia popular que contem 687 deputados, que elegem o presidente da assembleia. O trabalho ideológico é muito bem feito no país. O que eu quero dizer com isso? A sociedade consegue ver e diferenciar as movimentações reais dos inimigos externos e parecem ter consciência da importância da sua autodeterminação como algo inviolável e ao mesmo tempo veículo de melhorias substantivas. Os coreanos têm consciência dos ataques que sofreram e sofrem sob a égide do imperialismo materializado nos Estados Unidos e Japão.
Quero ressaltar que esse relato é pessoal, tomado através de anotações de viagens e aulas sobre a o país. Gostaria, mais uma vez, de agradecer o Cebrapaz, na pessoa do camarada José Reinaldo de Carvalho pela organização da delegação, também agradecer a Associação Coreana de Ciências Sociais, na pessoa do camarada diretor Kim Hak Mu por tudo que nos foi oferecido e tornou a viagem ainda mais surpreendente. Também gostaria de agradecer os guias e o seu chefe Ri Gyong Il, que fizeram a nossa viagem divertida e prazerosa.
A Coreia Popular tem problemas? Lógico. Tem contradições? Sim. Mas devemos lembrar do movimento da história que transformou esse país no que é hoje. Não é apenas a vontade de um homem que faz uma revolução, mas a vontade das massas. Kim Il Sung conseguiu ser o catalisador deste processo histórico que desde seu início esteve envolto em guerra para a sobrevivência.
Mesmo assim, com todas as dificuldades trazidas pelo imperialismo o país trabalha para manter a qualidade de vida de seus cidadãos, mantendo uma qualidade de vida que seguramente causa inveja a maior parte das classes trabalhadoras da Ásia, da América Latina e, me arrisco a dizer, do globo. A lição que tomo pra mim desta viagem é a velha máxima de Che “Não se pode confiar no imperialismo, nem um tantico assim.”
Quem somos nós pra julgar este processo revolucionário de “bom” ou “ruim”? É nosso dever compreendê-lo à luz da história. A partir disso saber qual o debate interno, pelo último discurso de Kim Jong Un, há uma consciência claríssima acerca do papel da revolução no cenário internacional e a importância da sua defesa militar para focar agora no desenvolvimento econômico. O abandono da Byunjin (desenvolvimento paralelo da economia e do setor militar) para o foco da construção da potencia socialista.
Por mais distinto que seja pra nós, é muito pouco provável que na sociedade coreana existam aqueles que questionem a esfericidade terrestre ou a importância da vacinação… Alguns chamam isso de falta de liberdade… Eu chamo de obscurantismo.
É um dever de todo comunista defender a revolução da Coreia Popular!
(*) Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria; Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense e Doutorando em Economia Política Mundial pela Universidade Federal do ABC