Bicentenário de Marx
Discutir Marx para contemplar ou para transformar o mundo?
Por Alexandre Weffort (*)
Em 2018 celebramos o bicentenário do nascimento de Marx, ocasião em que surge um texto sob o título: Boaventura: A nova “Tese onze”, de Marx. Segundo a editora Boitempo[1], “Boaventura de Sousa Santos atualiza, diante dos desafios políticos do século XXI, a canônica “Tese onze contra Feuerbach” escrita por Karl Marx em 1845″[2] [que dizia: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”].
Na conclusão do seu texto, Boaventura Santos propõe:
… a nova tese onze devia ter uma formulação do tipo: “os filósofos, filósofas, cientistas sociais e humanistas devem colaborar com todos aqueles e aquelas que lutam contra a dominação no sentido de criar formas de compreensão do mundo que tornem possível práticas de transformação do mundo que libertem conjuntamente o mundo humano e o mundo não-humano”. É muito menos elegante que a tese onze original, mas talvez nos seja mais útil.
Todavia, ao questionar o pensamento marxiano, B. Santos refere-se apenas a uma parcela do texto das Teses sobre Feuerbach. B. Santos informa, em outro texto, que pratica “um certo tipo de ação direta epistemológica que consiste em ocupar as teorias e as disciplinas em desrespeito pelos seus proprietários”. Mas, como diz o próprio, “não há epistemologias neutras”[3], nem mesmo na ‘ocupação’ das teorias alheias. E, mesmo submetidas ao pragmatismo que o texto evidencia, aquelas deveriam ser ‘ocupadas’ na sua inteireza (diríamos assim: ‘ocupadas em desrespeito aos proprietários’, mas respeitando os autores).
Nas teses em apreço, Marx criticava o “materialismo contemplativo” (9)[4], onde “as coisas, a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objeto ou da contemplação; mas não como atividade sensível humana, praxis, não subjetivamente” (…). “Não toma a própria atividade humana como atividade objetiva (…). Não compreende, por isso, o significado da atividade “revolucionária”, de crítica prática” (1). Diz Marx que “a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na praxis que o ser humano tem de comprovar a verdade” (2).
Os seres são produto das circunstâncias e produzem as circunstâncias na sua atividade. E, acrescenta, que a “coincidência do mudar das circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada e racionalmente entendida como praxis revolucionante” (3). Isto é, a vida tem que ser “tem de ser primeiramente entendida na sua contradição e depois praticamente revolucionada por meio da eliminação da contradição” (da tese 4).
Considerando que “a vida social é essencialmente prática” (8), Marx situa o “mundo sensível como atividade humana sensível prática” (5) e afirma que “a essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo. Na sua realidade ela é o conjunto das relações sociais” (6), “um produto social e que o indivíduo abstrato que analisa pertence na realidade a uma determinada forma de sociedade (7).
Conclui a sua crítica ao materialismo contemplativo indicando que o “ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade “civil”; o ponto de vista do novo [materialismo é] a sociedade humana, ou a humanidade socializada” (10). É na sequência destes pontos que afirma: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo” (a tese 11, corolário das anteriores).
A proposta de B. Santos de “atualização da Tese Onze” de Marx (e que relacionará com o que denominou “Epistemologias do Sul”, vem na sequência de um longo processo, que podemos notar já no seu célebre Discurso sobre as Ciências, de 1986).
A formulação agora proposta por Boaventura Santos não é, de fato, elegante (como reconhece o próprio). Estende desnecessariamente o texto no sentido do ‘politicamente correto’ e coloca como meta “colaborar com” os que lutam (que é objetivamente diferente de “participar da luta”), para um objetivo formulado em tom incerto (“tornar possíveis práticas de transformação do mundo”).
Nas teses marxianas citadas cabe discutir ‘epistemologias’ várias (do Norte, do Sul, do Este e do Oeste, ocidentalizadas ou não, sem esquecer o mundo humano e o não-humano), considerando necessariamente o conhecimento que – fruto também do pensamento de Marx e da praxis histórica subsequente – se desenvolveu no âmbito da sociologia, da ecologia e outras disciplinas científicas.
B. Santos assinala, referindo a citada “tese onze” de Marx, dois problemas: primeiro, indica que “não é verdade que os filósofos alguma vez se tenham dedicado a contemplar o mundo sem que a sua reflexão tenha tido algum impacto na transformação do mundo” e, depois, como segundo problema, que “não é possível imaginar uma prática transformadora (…) sem uma outra compreensão do mundo”[5].
No texto de B. Santos, a interpretação dada à tese 11 foi descontextualizada na sua relação com as 10 teses antecedentes, assim como do corpo do pensamento marxiano, a começar por uma tese anterior, de 1841: a análise à Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro, em que Marx, assinalando “uma ‘lei psicológica’ segundo a qual o espírito teorético, liberto em si, se transforma em energia prática”, assumia que “a praxis da filosofia é, ela própria, sujeita a contradições”, acrescentando que, “na medida em que o mundo se torna filosófico, a filosofia irá tornar-se ‘do mundo’ e a sua realização constituirá ao mesmo tempo a sua abolição”[6].
B. Santos procura ‘ocupar’ o texto marxiano das “Teses sobre Feuerbach”, mesmo que em contradição flagrante com o conteúdo nelas expresso. Os problemas que imputa à ‘tese onze’ resultam, na sua própria conjugação, contraditórios (poderíamos dizer que toda forma de compreensão do mundo é atuante porque constitui manifestação ideológica, mas poderá sê-lo tanto no sentido da conservação como no da transformação).
O termo ‘ocupar’ é o usado por B. Santos. Outra forma, mais comum, de exprimir a mesma ideia seria o de ‘apropriar-se’ (tornar nosso o que vem de outro). ‘Ocupar’ está mais próximo de ‘colonizar’, problemática e outro termo também frequentado por B. Santos em Epistemologias do Sul, indicativo cardeal que, não se pretendendo geográfico, sugere todavia uma conotação topográfica à escala global, sendo essa uma esfera de intervenção, em muitos aspectos, nova[7] e que requer um sério esforço de atualização teórica.
Todavia, a dicotomia (também sugerida por B. Santos, de um Sul global e um Norte global) remete-nos para uma dimensão geopolítica onde os discursos ganham uma nova significação. Nesse espaço de atuação, do teatro geopolítico, Boaventura de Sousa Santos desempenha hoje um assinalável papel mediador, integrando uma elite intelectual que se ocupa de “um certo tipo de ação direta epistemológica” (ou, dito de outro modo, da promoção de uma praxis contemplativa em muito semelhante àquela que Marx criticava nas suas Teses sobre Feuerbach).
____________________________________________________________________________________________
[1] A editora Boitempo promove a tradução e difusão global de obras de Marx (e outros autores) e reflexões em torno do pensamento marxista. Disponibiliza neste ano uma “enxurrada” (o termo é da própria editora) de 51 livros em formato e-book sobre o tema.
[2] Em https://blogdaboitempo.com.br/2018/01/09/boaventura-a-nova-tese-onze-de-marx/. Uma primeira discrepância manifesta-se no tratamento dado pela editora ao título do texto de Marx (que é “sobre” e não “contra” Feuerbach).
[3] Boaventura S. Santos, Epistemologias do Sul (p. 7, p. 445)
[4] Os números entre parêntesis referem-se a cada uma da “teses” de Marx sobre Feuerbach.
[5] Em https://blogdaboitempo.com.br/2018/01/09/boaventura-a-nova-tese-onze-de-marx/.
[6] Karl Marx, Diferencia entre la Filosofia de la Naturaleza de Demócrito y de Epicuro, Ed. Sextopiso, México, 2004, pp. 84-85.
[7] Nomeadamente no que refere às redes virtuais propiciadas pelas novas tecnologias de comunicação e ao impacte dessas nos processos identitários.
(*) Alexandre Weffort é professor, mestre em Ciência das Religiões e doutorando em Comunicação e Cultura.