Opinião
Compromissos pela paz soberana na Coreia e o encontro Kim-Trump
Os pundits, ditos gurus opinólogos convidados por oligopólios midiáticos liberais, estão confusos. Buscam um quadro simples para narrar que ou os EUA “venceram” na reunião pela qual o mundo esperava, entre Kim Jong-un e Donald Trump, nesta terça-feira (12), em Singapura, ou que Trump entregou o jogo. A primeira narrativa significaria uma concessão a Trump, quando a candidata desses meios foi Hillary Clinton. Mas o principal problema é o desvio egocêntrico da pauta: sob análise não deveria estar literalmente a força do aperto de mão ou em que posição ficaram os EUA, mas a seriedade dos compromissos alcançados, a significativa conquista para todas as forças consequentes ansiosas pela paz.
Por Moara Crivelente*
Para relembrar o contexto, o número é 28 mil. Há 28 mil soldados e civis estadunidenses destacados na Coreia do Sul, onde exercícios de guerra conjuntos são realizados anualmente, como uma provocativa demonstração de força contra a República Popular Democrática da Coreia (RPDC) e, por extensão, contra a China. Mas o histórico de tal política agressiva é longo. O acordo para essa cooperação militar foi assinado entre os EUA e a República da Coreia em 1953, cimentando a divisão coreana. Em 2017, os aliados também instalaram na porção sul da península, apesar de grandes protestos, o sistema de mísseis balísticos THAAD (Terminal High Altitude Area Defense, cuja tradução ainda varia, mas aqui fica como Defesa da Área Terminal de Elevada Altitude).
Por outro lado, há tempos os líderes da RPDC propõem um tratado de paz com os EUA para enterrar a infame Guerra na Coreia (1950-1953), mas suas declarações não são publicáveis segundo o critério daquela mídia oligopolizada. Ali os líderes norte-coreanos são caracterizados invariavelmente de ditadores sanguinários, consequentemente irracionais e, por isso, sem fala, a menos que se possa destacar algum trecho de contexto para corroborar a mesma caracterização.
Após o encontro com Trump, Kim Jong-un, que preside a Comissão de Assuntos Estatais da RPDC e o Partido dos Trabalhadores da Coreia, ainda foi assim caricaturado por analistas convidados na CNN, nesta terça (12). Para um deles e para o apresentador, um grave problema foi que Trump “não exigiu compromissos” ou não deu uma aula em matéria de direitos humanos para Kim. Tal questão foi reiterada por vários jornalistas em coletiva de imprensa com Trump, ainda em Singapura, após o encontro. Mas tal disparate é recorrente; não é preciso aqui repetir quão descabida é a ideia de os EUA darem lições nessa matéria a quem quer que seja, por mais necessários que sejam tais compromissos humanistas.
A demanda da RPDC, aliás, nada irracional, é o fim da política beligerante – a começar pelas ameaças constantes de invasão e agressão feitas não só através dos exercícios de guerra, mas também de sanções persistentes e inflamatórias declarações, como a dada pelo próprio Trump há apenas alguns meses. Em agosto de 2017 ele disse que Kim, este sim acusado de ameaçar os EUA, seria “respondido com fogo, fúria e, francamente, força, daquele tipo que o mundo nunca viu antes”. A ameaça foi alegadamente justificada pelo teste de um míssil capaz de atingir os EUA, pela Coreia Popular, que foi alvo de ainda mais sanções impostas pelo Conselho de Segurança da ONU. Alguns analistas colocaram o episódio junto a outros, como o recente desdém demonstrado a aliados tradicionais como Canadá e a União Europeia, no quadro de uma indefinida “Doutrina Trump”, resumida como: “Esta é a América”, ou algo como, “vão ter que nos engolir”, para usar uma expressão rasteira similar às atribuídas a um presidente menos polido que seus antecessores no comando da mesma potência imperialista.
O uso de armas nucleares como tática “dissuasora” é há muito condenado em todo o mundo. O Conselho Mundial da Paz lançou ainda em 1950 o Apelo de Estocolmo contra as armas de destruição em massa, um apelo assinado por centenas de milhões de pessoas em todos os continentes. Ainda assim, a doutrina da “dissuasão nuclear”, que é essencialmente uma ameaça a toda a humanidade, persiste, mas só “funciona” como ameaça credível se monopolizada pelas grandes potências imperialistas – preferencialmente, pelos EUA, que se outorgaram o papel de polícia universal. Daí a ofensiva contra o Irã e a Coreia Popular, particularmente – ainda que o primeiro sequer tenha um programa nuclear bélico, apesar do que alegam, sem provas, EUA e Israel.
O compromisso que os analistas estratégicos liberais nos EUA exigiam que Trump arrancasse de Kim Jong-un era uma “desnuclearização” incondicional, ou seja, que a Coreia Popular abra mão do seu arsenal sem contrapartidas imediatas. Já na coletiva de imprensa em Singapura, refletindo e reiterando quão produtivo e cordial foi o encontro, Trump explicou o acordo assinado, cujo texto ainda não havia circulado, mas que ele classificou de um “documento bastante abrangente”. Disse ainda considerar Kim habilidoso na diplomacia e comprometido com o avanço do acordo. Entre os pontos negociados e pontuados por Trump nas respostas aos jornalistas estão as sanções, a serem suspensas à medida que o tema nuclear for tratado; o fim dos exercícios de guerra entre EUA e Coreia do Sul e a gradual retirada das tropas estadunidenses, pontos centrais para a estabilidade na região e reiterados por Kim Jong-un. Aliás, Trump chegou a reconhecer que os exercícios são “muito provocativos” e “inapropriados” e adicionou, claro, que custam caro financeiramente.
Entretanto, os jornalistas estão também ansiosos por garantias absolutas do processo de desnuclearização verificado, preferencialmente, com a presença de especialistas estadunidenses. É uma demanda afrontosa, tendo em vista que foi sempre na ameaça de guerra que se assentou a política dos EUA e seus aliados sul-coreanos até a saída da presidenta Park Geun-hye há um ano, o que deu espaço para um presidente, Moon Jae-in, disposto à reaproximação com a Coreia Popular. Por outro lado, desde os recentes e promissores encontros intercoreanos ficou evidente qual é a perspectiva dessa disposição para a paz soberana e a estabilidade, como demonstrou a RPDC com a destruição dos locais de testes nucleares em maio e a suspensão dos mesmos.
Os EUA, é claro, sugeriram naquele momento que suas ameaças e sanções forçaram Kim Jong-un à diplomacia, mas a interlocução com a China e o compromisso do presidente sul-coreano são certamente fatores preponderantes para finalmente se pavimentar esse caminho. Afinal, nem seis décadas da mesma política de ameaças e sanções contra a Coreia Popular alcançaram tal feito antes; pelo contrário, só fizeram deixar a região à beira de uma guerra de proporções impensáveis e o povo coreano literalmente dividido, contra a sua vontade.
A propósito, a KCNA, agência de notícias da RPDC, ressalta que em três dias se comemora o 18º aniversário da Declaração Conjunta Norte-Sul, adotada pelos chefes de Estado dos dois países em 15 de junho de 2000 e reforçada quando os líderes atuais voltaram a se reunir em 27 de abril, reafirmando o mesmo compromisso, através da Declaração de Panmunjom pela Paz, a Prosperidade e a Reunificação da Península Coreana. “É o programa por uma reunificação independente em nosso tempo e uma declaração de independência e grande unidade da nação”, afirma a agência, em matéria desta segunda (11).
O compromisso é também uma declaração contundente de que a defesa da soberania coreana, como têm afirmado os sucessivos líderes da Coreia Popular, é inegociável. Que fiquem avisados os gurus da mídia oligopolizada: não deve haver acordo em cima da mesa que coloque este ponto em questão. Quanto à desnuclearização e o caminho para a paz e a estabilidade na região, essa é a vontade expressa por todos.
* Doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos e membro do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), onde assessora a presidência do Conselho Mundial da Paz