Opinião

Comemorações do aniversário de Martin Luther King ignoram críticas ao capitalismo e militarismo

17/01/2017
Martin Luther King Jr. acompanhado do renomado pediatra Benjamin Spock, do pastor Frederick Reed e do líder sindical Cleveland Robinson durante protesto contra a Guerra do Vietnã em 16 de março de 1967

As comemorações do nascimento de Martin Luther King Jr. (15/01) sempre se concentram no ativismo dele na área de direitos civis: as manifestações não violentas que levaram à promulgação da Lei dos Direitos Civis, em 1964, e à Lei do Direito ao Voto, em 1965, nos EUA.

Por Zaid Jilani*

Porém, os últimos anos da vida do Dr. King normalmente são ignorados. Quando foi assassinado, em 1968, o ativista estava no meio de uma ampla campanha contra a desigualdade econômica e a pobreza, ao mesmo tempo que protestava intensamente contra a Guerra do Vietnã.

Essa campanha teve sua origem intelectual nas primeiras décadas de vida de King, que cresceu incomodado com os excessos do capitalismo à sua volta, mesmo enquanto se dedicava à causa dos direitos civis. No verão americano de 1952, o pastor escreveu uma carta descrevendo suas preocupações para Coretta Scott, com quem havia começado a namorar alguns meses antes. Na carta, concluía que o “capitalismo havia ultrapassado sua utilidade”:

Imagino que você saiba que sou muito mais socialista quanto à teoria econômica do que capitalista. E, ainda assim, não me oponho tanto ao capitalismo a ponto de não conseguir enxergar seus méritos relativos. Tudo começou por um motivo nobre e superior, isto é, acabar com os monopólios comerciais dos nobres, mas, assim como ocorre na maioria dos sistemas humanos, acabou por vítima daquele contra quem inicialmente se revoltava. Portanto, o capitalismo ultrapassou sua utilidade. Acabou por introduzir um sistema que tira coisas necessárias das massas para oferecer luxo às classes altas.

Oficiais do governo monitoravam o seu crescente radicalismo e o temiam. “King é tão importante hoje em dia que parece Marx vindo à Casa Branca”, reclamou o presidente John F. Kennedy em 1963, enquanto King intensificava sua campanha não violenta no sul dos EUA. O presidente autorizou seu irmão, o procurador-geral Bobby Kennedy, a grampear King e seus assessores.

Em 1966, King disse à sua equipe na Conferência de Líderes Cristãos do Sul que “deve haver uma melhor distribuição da riqueza e, talvez, os EUA devam se direcionar a um socialismo democrático. Chame como preferir, chame de democracia ou chame de socialismo democrático, mas deve haver uma melhor distribuição da riqueza neste país dentre todos os filhos de Deus”.

King também vinha ficando mais preocupado com a guerra no Vietnã a ponto de levantar a questão em conversas particulares com o presidente Lyndon Johnson por telefone e em reuniões na Casa Branca.

Em abril de 1967, King fez um discurso na Igreja de Riverside, em Nova York, em que chamou o governo dos EUA de “maior gerador de violência do mundo” e criticou os bombardeios de napalm e o apoio a um governo de marionetes no Vietnã do Sul.

A reação do establishment ao discurso de King foi amarga. O conselho editorial do New York Times criticou King por associar a guerra no Vietnã às dificuldades relacionadas aos direitos civis e à pobreza nos EUA, dizendo ser “uma conexão muito superficial” e que, dessa forma, fazia um “desserviço” a ambas as causas. O jornal conclui alegando “não haver respostas simples para a Guerra no Vietnã nem para a injustiça racial neste país”. O conselho editorial do Washington Post disse que King havia “depreciado sua capacidade de contribuição à sua causa, a seu país e a seu povo”. Ao todo, 168 jornais o criticaram no dia seguinte ao discurso.

O presidente Johnson cortou relações com King imediatamente. “O que esse maldito pastor preto está fazendo comigo?”, teria dito Johnson após o discurso. “Demos a Lei de Direitos Civis de 1964 para ele, demos a Lei de Direito ao Voto de 1964, demos a Guerra contra a Pobreza. O que mais ele quer?”

“Daquele momento em diante, King ficaria do lado de fora, em um protesto, cantando palavras de ordem pela paz através dos portões de ferro forjado”, observou o historiador Harvard Sitkoff.

Uma pesquisa do grupo Harris conduzida após o discurso de King sobre o Vietnã concluiu que apenas 25% dos próprios americanos de origem africana apoiavam King e seu posicionamento contra a guerra — “apenas 9% da sociedade americana concorda com a oposição do pastor à guerra”.

Apesar da reação negativa das elites e da sociedade em geral, King continuava a lutar pela causa. Em 1967, fez um sermão da noite de Natal para a congregação da Igreja Batista de Ebenezer, em Atlanta, em que atacava não somente o capitalismo americano, mas o sistema de mercado global que não atendia às necessidades dos pobres em todo o mundo.

“Comecei pensando sobre o fato de que aqui mesmo, em nosso país, gastamos milhões de dólares todos os dias para armazenar alimentos excedentes”, pregou. “E pensei comigo mesmo: Eu sei onde armazenar esses alimentos de forma gratuita — nos estômagos vazios de milhões de filhos de Deus na Ásia, África, América Latina e até mesmo em nossa própria nação, que vão dormir com fome.”

Durante a campanha de direitos civis, King também organizava trabalhadores, como por exemplo, quando fez uma campanha contra o referendo do direito ao trabalho de Oklahoma e alertou que o aumento da competição econômica entre brancos e negros prejudicaria os direitos civis — defendendo uma “Grande Aliança” entre brancos e negros da classe trabalhadora.

Com a Campanha do Pobres, iniciada em 1968, King intensificou essa campanha, destinada a criar bons empregos, habitação e um padrão de vida decente para todos os americanos. Décadas antes de os manifestantes americanos irem às ruas de Nova York e de outras cidades para “ocupar” o espaço em protesto à desigualdade econômica, King propôs um grande acampamento de barracas em Washington D.C. para exibir medidas contra a pobreza. Veja aqui um artigo da Associated Press sobre a campanha:

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King nunca viu os frutos dessa campanha. O pastor foi assassinado naquele mesmo ano enquanto organizava greves com os funcionários do saneamento básico de Memphis.

O presidente da Conferência de Líderes Cristãos do Sul, Ralph Abernathy, e Coretta Scott King levaram adiante o plano, armando tendas e barracas no Passeio Nacional em Washington D.C. Chamado de “Cidade da Ressurreição”, o acampamento durou um mês até ser desmontado à força pelo Departamento do Interior.

As taxas de aprovação de King são muito mais altas décadas depois de sua morte do que enquanto estava vivo. Em 1987, 76% dos americanos tinham uma visão favorável do líder ativista. Mas muitos ainda aprendem uma versão simplificada de sua vida, voltada apenas para uma das três dimensões que o definiam. Durante o discurso do Vietnã que transformou o establishment contra ele, King criticou “o grande tripé de racismo, materialismo extremo e militarismo”.

* Jornalista estadunidense

Fonte: The Intercept, Tradução: Inacio Vieira

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