China

China, 70 anos de socialismo

29/09/2019

O escritor Wladimir Pomar (*), estudioso há décadas sobre a China, autor de “O Enigma Chinês: capitalismo ou socialismo”, analisa a evolução do socialismo no grande país asiático nas diferentes etapas percorridas, demonstrando como o socialismo com características chinesas fortaleceu o país e preparou a sociedade para novos desafios.

Por Wladimir Pomar (*)

Em 1º de outubro de 1949, após as guerras de resistência contra a invasão japonesa e contra a ditadura de Chiang Kaishek, a China proclamou sua república democrática popular, de orientação socialista.

Entre 1937 e 1949, o Partido Comunista da China conseguira forjar duas grandes alianças sociais e políticas de âmbito nacional. Uma, contra o imperialismo japonês, incluindo as forças que apoiavam Chiang. Outra, abrangendo os operários urbanos, os camponeses, a pequena burguesia urbana e a burguesia nacional, em contraposição aos latifundiários feudais e à burguesia compradora, que dominavam o país desde o fim da monarquia e da proclamação da república.

A vitória dessa segunda aliança fez com que, a partir de então, a história chinesa passasse por experiências econômicas, sociais e políticas voltadas para suplantar séculos de dominação e atraso feudal e imperialista e para elevar os padrões de vida de seus vários povos (vivem na China mais de 50 nacionalidades).

Nos primeiros 29 anos, tendo como órgão supremo a Assembleia Popular, a República Popular da China enfrentou não só novas ameaças externas (a exemplo da Guerra da Coréia, nos anos 1950) mas também experimentos econômicos, sociais e políticos que lhe permitissem superar o atraso e a miséria seculares.

A reforma agrária, que distribuiu as terras agrícolas entre centenas de milhões de camponeses, assim como a cooperação com a burguesia nacional nas cidades para desenvolver a indústria, o comércio e os serviços, são exemplos desses experimentos.

No entanto, enquanto os camponeses, em grande medida auxiliados pelas novas cooperativas agrícolas, se esforçaram para elevar a produção agrícola e suprir as necessidades alimentares da população, a burguesia nacional agiu quase exclusivamente no sentido de enriquecer como a antiga burguesia compradora.

Foi essa tendência que, ainda nos anos 1950, levou à estatização de diversos setores industriais e comerciais e a vários esforços frustrados para dar um salto na produção industrial e na economia como um todo. Mas, como o ritmo de desenvolvimento continuou baixo, impedindo a superação dos grandes bolsões de miséria presentes, no final dos anos 1960 o Partido Comunista e o governo conclamaram o conjunto de sua população a uma radical revolução cultural.

Depois de 10 anos de imensas mobilizações populares e experimentos os mais variados, incluindo lutas sociais e políticas para intensificar a produção industrial e agrícola e elevar o padrão de vida dos chineses, a revolução cultural findou por inanição. Em seu lugar, após uma intensa avaliação crítica de âmbito nacional, entre 1976 e 1978, foi apresentado um programa de reformas, numa perspectiva de 50 anos ou mais, visando elevar a produção agrícola e industrial, retirar da pobreza a maior parte da população, e modernizar a sociedade no espírito das revoluções científicas e tecnológicas em curso no mundo.

Numa primeira fase, entre 1978 e 1984, as reformas concentraram-se na agricultura, melhorando os preços dos produtos agrícolas adquiridos pelo Estado, dando livre curso à ação do mercado nas zonas rurais, transformando as cooperativas agrícolas em centros de difusão das tecnologias agronômicas entre os camponeses e intensificando a fabricação industrial no próprio campo para suprir equipamentos utilizados na vida rural.

Paralelamente, ainda em seu período inicial, as reformas realizaram, nas zonas urbanas, o enxugamento da prática de emprego de 3 trabalhadores para cada função industrial, que permitia um índice relativamente alto de empregos, mas impunha uma baixa produtividade à indústria e às obras públicas. Para evitar o desemprego, esse enxugamento foi acompanhado da instalação de escritórios de projetos para financiar engenheiros, técnicos e trabalhadores que quisessem sair das empresas estatais para implantar novas indústrias, de caráter privado.

Dessa forma, quando as reformas industriais propriamente ditas tiveram início, em 1984, a agricultura apresentava sólidos indicadores de crescimento e de novas demandas para a indústria de máquinas e outros insumos, e já havia intensa diversificação produtiva com base em novas indústrias privadas.

Por outro lado, ao invés de privatizar as empresas estatais, como era intensamente divulgado na imprensa ocidental, o Estado chinês introduziu a concorrência entre elas. Ou seja, criou mais de uma estatal em cada ramo industrial, de modo a intensificar a concorrência, não só entre elas, mas também entre elas e as empresas privadas, com a dupla missão de evitar a burocratização e levá-las a intensificar o uso de novas tecnologias para aumentar a produtividade.

Ou seja, embora os anos 1980 tenham se enchido de manchetes e notícias sobre as “privatizações” das empresas chinesas, isso não passou de fake news difundidos pela imprensa ocidental. De qualquer modo, foi nesse contexto que entrou em execução o programa de promoção de investimentos estrangeiros. A China abriu as portas para tais investimentos, desde que em joint ventures com empresas chinesas (estatais e/ou privadas).

Eles deveriam promover o desenvolvimento industrial, estar prioritariamente voltados para o atendimento do mercado externo, e transferir novas e altas tecnologias para as empresas chinesas das joint ventures. Em articulação com essas diretivas, o governo chinês também intensificou investimentos em múltiplos centros de pesquisa e desenvolvimento, visando disseminar as tecnologias incorporadas por aquelas joint ventures e, com base nelas, avançar em novas e altas tecnologias.

Em outras palavras, sem realizar esse be-a-bá inicial, a China não estaria sendo a locomotiva do que alguns estudiosos chamam de “maior transformação econômica dos últimos 250 anos” da história mundial. Entre 1984 e 2004 (30 anos) a China apresentou crescimentos anuais do produto interno bruto superiores a 10% ao ano, embora desde os anos 1990 tenha realizado esforços frustrados para reduzir tal crescimento ao patamar de 6% a 7%, só alcançado com a crise econômica mundial de 2007-2008. Apesar de tudo isso, alguns estudiosos consideram que a China apenas copiou a estratégia industrializante do Japão e dos Tigres Asiáticos (Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Singapura), de desenvolvimento baseado na exportação de bens e serviços, acompanhado de uma política externa que manteve como eixo os pontos básicos de “coexistência pacífica” da Conferência de Bandung, de 1956.

No entanto, assim como outros analistas do período inicial das reformas chinesas, eles desconsideram algumas características importantes da estratégia chinesa, que as diferenciam dos Tigres.

A multiplicação e reforçamento das empresas estatais, ao invés de sua privatização, é provavelmente a mais importante.

Além disso, o Estado chinês manteve o monopólio ou quase monopólio (embora com a concorrência de diversas estatais, para evitar a burocratização e promover o desenvolvimento científico e tecnológico) sobre alguns ramos econômicos, a exemplo do sistema financeiro, da exploração petrolífera e da produção e distribuição de energia.

Ou seja, ao invés de apenas uma estatal monopolista em cada um desses ramos, o Estado monopolista tem diversas estatais concorrendo entre si para desenvolver a produtividade. Portanto, diferentemente dos Tigres, a espinha vertebral da economia chinesa continuou sendo o complexo de empresas estatais, evitando tanto sua privatização quanto a ausência de concorrência, inclusive nos setores que o Estado mantém sob seu poder. Essas estatais também concorrem ativamente com as empresas privadas existentes no mercado, obrigando-se a elevar a produtividade, baixar custos e preços e atender de forma crescente não só ao mercado internacional como ao mercado doméstico.

São essas características que levaram o Partido Comunista e o Estado chineses a denominar seu sistema econômico, social e político como socialismo de mercado.

Isto é, um sistema que tem em conta que o Estado sozinho seria incapaz de avançar no desenvolvimento das forças produtivas do país e realizar a transição de um desenvolvimento incompleto do capitalismo para uma formação histórica sem propriedade privada.

Ou seja, sua prática e seus experimentos, assim como a prática dos demais países socialistas, comprovavam que o Estado, para desenvolver as forças produtivas de uma nação que não conhecera o pleno desenvolvimento histórico do mercado capitalista, teria que completar tal desenvolvimento com a participação de formas capitalistas, mas sob direção socialista. Isto se tornou a condição para realizar o sonho de desenvolver as forças produtivas ao ponto de atender a todas as necessidades sociais e tornar desnecessária a propriedade privada e a alienação do trabalho.

Foi na busca desse objetivo histórico que, apesar da crise mundial capitalista que assola o mundo desde 2007, a China conseguiu reduzir o ritmo de crescimento de seu Produto Interno Bruto de mais de 10% ao ano para cerca de 6% ao ano. Crescimento que, em termos mundiais, é somente inferior às taxas de crescimento da Índia (7,5% a.a.), mas é quase três vezes superior ao dos Estados Unidos, duas vezes o da Rússia e superior ao de todas as nações industrializadas da Europa. Em termos de paridade de poder de compra, o PIB chinês apresenta crescimento constante, demonstrando o afluxo da população chinesa aos bens e riquezas.

A China também já deixou de ser unicamente uma receptora de investimentos externos. Além de diversas empresas chinesas terem se tornado players ativos no mercado mundial, a exemplo da Baidu, que oferece segurança gratuita a programas de computadores, a China se tornou uma investidora internacional ativa. Desde 2015 investe no exterior mais do que recebe em investimentos externos, numa demonstração de vitalidade econômica e grande acumulação de reservas financeiras.

Paralelamente, antes acusada de depredar o meio ambiente com seu desenvolvimento industrial, a China se tornou paulatinamente um dos países mais ativos na substituição dos combustíveis fósseis por energias renováveis e no processo de reflorestamento, o que pode ser comprovado tanto pelas cidades em que as energias solar e eólica se tornaram as principais fontes, quanto pelas coberturas florestais que hoje margeiam inúmeras ferrovias de alta velocidade, como a que liga Beijing a Tianjin.

A suposição de que os grandes projetos chineses resultem na intensificação da produção e, portanto, num crescente uso de energias fósseis, tem sido desmentida pela própria experiência da recuperação ambiental chinesa. Mesmo assim, alguns comentaristas ainda afirmam que a China mantém inalterado seu papel de grande destruidora ambiental, já que seus projetos exigiriam grande extração de recursos minerais e a intromissão no meio ambiente.

No entanto, como a China tem avançado intensamente na recuperação do meio ambiente e na intenção de demonstrar que o crescimento econômico pode ser realizado sem causar, necessariamente, degradação ambiental, isso a está cacifando a colocar em prática projetos internacionais de grandes dimensões, com a atração de investidores de todo o mundo.

Assim, não por acaso ela também lidera o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura, que já conta com a participação de 80 nações. Todas estão interessadas em alavancar suas economias com o auxílio dos projetos chineses, tanto de infraestrutura que permite acesso mais fácil e barato a mercados da Europa, Oriente Médio e Ásia, incluindo o afluente mercado doméstico chinês, quanto de desenvolvimento científico e tecnológico.

Em termos objetivos, pode-se afirmar que a China está produzindo um impacto profundo no desenvolvimento econômico global, seja através do Banco de Investimento Asiático em Infraestrutura, do Fundo da Rota da Seda, do Banco de Desenvolvimento do BRICS, assim como dos investimentos em projetos produtivos e de infraestrutura em 112 países.

Segundo o presidente Xi Jinping, a China está apresentando para inúmeros países um modelo socialista que se torna, cada vez mais, “uma nova opção” para “países e nações que queiram acelerar seu desenvolvimento enquanto preservam sua independência”.

Os dois principais projetos chineses que sustentam essa “nova opção” são “Um Cinturão, uma Rota” (One Belt, One Road), lançado em 2013, e o Plano “Made in China 2025”, lançado em 2015.

Para o desenvolvimento chinês, tais projetos são estratégicos porque a China necessita manter altas taxas de investimento, reciclar os dólares que obtém com seus saldos comerciais e, ao mesmo tempo, elevar sua competitividade e seu consumo interno. Portanto, precisa ampliar sua presença em todo o mundo, garantindo acesso aos recursos naturais e a todos os mercados.

Na efetivação do Projeto “Um Cinturão, Uma Rota” a China já obteve a adesão de 126 países e 29 organizações internacionais. Ela pretende construir uma infraestrutura de alta qualidade, sustentável, resistente a riscos, que ajude os diversos países participantes a utilizarem plenamente a riqueza de seus recursos.

Ou seja, como afirmou Xi Jinping, que o projeto permita um crescimento de alta qualidade para todos, ecologicamente sustentável e compartilhado pelo mundo.

É evidente que há restrições ao projeto, não só dos Estados Unidos, mas também relacionadas a contradições entre países das regiões atendidas. Por exemplo, a Índia está preocupada com a construção do corredor ferroviário que atravessa a região de Caxemira, que disputa com o Paquistão.

Setores comerciais do Brasil se opõem à construção do corredor bi-oceânico, que visa interligar os litorais do Oceano Atlântico e do Oceano Pacífico no Cone Sul da América do Sul.

Já o plano “Made in China 2025”, lançado em 2015, faz parte do processo de desenvolvimento científico e tecnológico chinês, que cada vez mais o torna capaz de orientar a 4ª Revolução Industrial em todo o mundo. Ou seja, no curto espaço de 40 anos a China foi não só capaz de assimilar as três revoluções industriais comandadas pelos países ocidentais desde o século 19, mas também de assumir a liderança mundial no processo de desenvolvimento da nova revolução industrial em curso.

Além disso, estão certos os analistas que supõem que a China não quer mais ser conhecida por seus produtos simples e baratos e por sua produção em massa, com base em uma ampla oferta de mão de obra de baixo custo. Com seu plano “Made in China 2025”, ela busca dar um salto na estrutura produtiva de sua indústria, tendo por base as altas tecnologias.

Com isso, os setores-chaves da economia chinesa passarão a ser os equipamentos eletrônicos, microchips, máquinas agrícolas, novos materiais, energias renováveis, carros elétricos, ferramentas de controle numérico, robótica, tecnologia de informação, tecnologia aeroespacial, equipamentos ferroviários, equipamentos de engenharia oceânica, navios de última geração, e dispositivos médicos avançados.

Em outras palavras, até 2025 a China pretende reduzir sua dependência de tecnologias estrangeiras e consolidar sua participação na produção científica e tecnológica mundial.

Nesse sentido, a reação dos Estados Unidos ao avanço internacional da Huawei não se relaciona somente à concorrência mundial de celulares e equipamentos de telecomunicações. Tem como núcleo as disputas envolvendo a rede móvel 5G, a Inteligência Artificial e várias outras tecnologias desenvolvidas pelos centros de pesquisas e pelas empresas chinesas.

Em vista de tudo isso, alguns comentaristas reconhecem que a hegemonia ocidental, conquistada pelo capitalismo promotor da revolução industrial do século 19 em diante, está sendo substituída pela ascensão da China. Nesse processo, Brasil, Rússia, Índia e África do Sul que, com a China, formam o grupo BRICS, poderiam auferir em melhores condições a parceria da nova potência econômica mundial. Isso lhes permitiria não só um salto técnico na infraestrutura de transportes e de saneamento, mas também na meta civilizacional de retirar da miséria e da pobreza alguns milhões de habitantes, como fez a China ao elevar para patamares acima da pobreza quase um bilhão de habitantes, e avançar no desenvolvimento educacional, científico e tecnológico.

É lógico que Rússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão, que estão mais próximos das fronteiras ocidentais da China e formam, com ela, a Organização de Cooperação de Xanghai (OCX), tendo por objetivo assegurar segurança militar mútua, talvez tenham melhores condições de aproveitar os avanços produtivos, científicos, tecnológicos, de infraestrutura e ambientais chineses.

Não por acaso Irã, Afeganistão, Bielorrússia e Mongólia estão solicitando ingressar na OCX, especialmente tendo em conta a efetivação do projeto “Um Cinturão, Uma Rota” e a ampliação dos objetivos de cooperação da OCS, que passaram a incluir educação, ciência, tecnologia, saúde, proteção ambiental, turismo, mídia, esportes, ajuda humanitária e cultura, ao mesmo tempo em que estendem seus princípios para incluir governança global e fomentar relações internacionais.

Por outro lado, a OCX se tornou um dos principais parceiros da ASEAN, antes totalmente alinhada aos Estados Unidos. Incluindo Tailândia, Filipinas, Malásia, Singapura, Indonésia, Brunei, Vietnã, Mianmar, Laos, Camboja, Papua-Nova Guiné e Timor-Leste, a ASEAN e a OCX estabeleceram uma cooperação para a paz, estabilidade, desenvolvimento e sustentabilidade asiática, incluindo os itens de segurança, economia, finanças, turismo, cultura e proteção ambiental.

Em vista de tudo isso, não é totalmente estranho que os Estados Unidos de Donald Trump e de muitas corporações transnacionais não queiram admitir que o milagre chinês tenha sido realizado sob a liderança de um Partido Comunista, ainda por cima, num sistema econômico e social de socialismo de mercado, com uma democracia de caráter popular. E, mais ainda, que apesar de todas as medidas protecionistas de Trump, o saldo comercial chinês nas relações com os Estados Unidos tenha ultrapassado os US$ 400 bilhões em 2018. O importante é que, apesar disso, aprendam com a história e não apelem para a guerra nuclear como advogam alguns tresloucados.

Em 1º de outubro de 1949, após as guerras de resistência contra a invasão japonesa e contra a ditadura de Chiang Kaishek, a China proclamou sua república democrática popular, de orientação socialista.

Entre 1937 e 1949, o Partido Comunista da China conseguira forjar duas grandes alianças sociais e políticas de âmbito nacional. Uma, contra o imperialismo japonês, incluindo as forças que apoiavam Chiang. Outra, abrangendo os operários urbanos, os camponeses, a pequena burguesia urbana e a burguesia nacional, em contraposição aos latifundiários feudais e à burguesia compradora, que dominavam o país desde o fim da monarquia e da proclamação da república.

A vitória dessa segunda aliança fez com que, a partir de então, a história chinesa passasse por experiências econômicas, sociais e políticas voltadas para suplantar séculos de dominação e atraso feudal e imperialista e para elevar os padrões de vida de seus vários povos (vivem na China mais de 50 nacionalidades).

Nos primeiros 29 anos, tendo como órgão supremo a Assembleia Popular, a República Popular da China enfrentou nã só novas ameaças externas (a exemplo da Guerra da Coréia, nos anos 1950) mas também experimentos econômicos, sociais e políticos que lhe permitissem superar o atraso e a miséria seculares.

A reforma agrária, que distribuiu as terras agrícolas entre centenas de milhões de camponeses, assim como a cooperação com a burguesia nacional nas cidades para desenvolver a indústria, o comércio e os serviços, são exemplos desses experimentos.

No entanto, enquanto os camponeses, em grande medida auxiliados pelas novas cooperativas agrícolas, se esforçaram para elevar a produção agrícola e suprir as necessidades alimentares da população, a burguesia nacional agiu quase exclusivamente no sentido de enriquecer como a antiga burguesia compradora.

Foi essa tendência que, ainda nos anos 1950, levou à estatização de diversos setores industriais e comerciais e a vários esforços frustrados para dar um salto na produção industrial e na economia como um todo. Mas, como o ritmo de desenvolvimento continuou baixo, impedindo a superação dos grandes bolsões de miséria presentes, no final dos anos 1960 o Partido Comunista e o governo conclamaram o conjunto de sua população a uma radical revolução cultural.

Depois de 10 anos de imensas mobilizações populares e experimentos os mais variados, incluindo lutas sociais e políticas para intensificar a produção industrial e agrícola e elevar o padrão de vida dos chineses, a revolução cultural findou por inanição. Em seu lugar, após uma intensa avaliação crítica de âmbito nacional, entre 1976 e 1978, foi apresentado um programa de reformas, numa perspectiva de 50 anos ou mais, visando elevar a produção agrícola e industrial, retirar da pobreza a maior parte da população, e modernizar a sociedade no espírito das revoluções científicas e tecnológicas em curso no mundo.

Numa primeira fase, entre 1978 e 1984, as reformas concentraram-se na agricultura, melhorando os preços dos produtos agrícolas adquiridos pelo Estado, dando livre curso à ação do mercado nas zonas rurais, transformando as cooperativas agrícolas em centros de difusão das tecnologias agronômicas entre os camponeses e intensificando a fabricação industrial no próprio campo para suprir equipamentos utilizados na vida rural.

Paralelamente, ainda em seu período inicial, as reformas realizaram, nas zonas urbanas, o enxugamento da prática de emprego de 3 trabalhadores para cada função industrial, que permitia um índice relativamente alto de empregos, mas impunha uma baixa produtividade à indústria e às obras públicas. Para evitar o desemprego, esse enxugamento foi acompanhado da instalação de escritórios de projetos para financiar engenheiros, técnicos e trabalhadores que quisessem sair das empresas estatais para implantar novas indústrias, de caráter privado.

Dessa forma, quando as reformas industriais propriamente ditas tiveram início, em 1984, a agricultura apresentava sólidos indicadores de crescimento e de novas demandas para a indústria de máquinas e outros insumos, e já havia intensa diversificação produtiva com base em novas indústrias privadas.

Por outro lado, ao invés de privatizar as empresas estatais, como era intensamente divulgado na imprensa ocidental, o Estado chinês introduziu a concorrência entre elas. Ou seja, criou mais de uma estatal em cada ramo industrial, de modo a intensificar a concorrência, não só entre elas, mas também entre elas e as empresas privadas, com a dupla missão de evitar a burocratização e levá-las a intensificar o uso de novas tecnologias para aumentar a produtividade.

Ou seja, embora os anos 1980 tenham se enchido de manchetes e notícias sobre as “privatizações” das empresas chinesas, isso não passou de fake news difundidos pela imprensa ocidental. De qualquer modo, foi nesse contexto que entrou em execução o programa de promoção de investimentos estrangeiros. A China abriu as portas para tais investimentos, desde que em joint ventures com empresas chinesas (estatais e/ou privadas).

Eles deveriam promover o desenvolvimento industrial, estar prioritariamente voltados para o atendimento do mercado externo, e transferir novas e altas tecnologias para as empresas chinesas das joint ventures. Em articulação com essas diretivas, o governo chinês também intensificou investimentos em múltiplos centros de pesquisa e desenvolvimento, visando disseminar as tecnologias incorporadas por aquelas joint ventures e, com base nelas, avançar em novas e altas tecnologias.

Em outras palavras, sem realizar esse be-a-bá inicial, a China não estaria sendo a locomotiva do que alguns estudiosos chamam de “maior transformação econômica dos últimos 250 anos” da história mundial. Entre 1984 e 2004 (30 anos) a China apresentou crescimentos anuais do produto interno bruto superiores a 10% ao ano, embora desde os anos 1990 tenha realizado esforços frustrados para reduzir tal crescimento ao patamar de 6% a 7%, só alcançado com a crise econômica mundial de 2007-2008. Apesar de tudo isso, alguns estudiosos consideram que a China apenas copiou a estratégia industrializante do Japão e dos Tigres Asiáticos (Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Singapura), de desenvolvimento baseado na exportação de bens e serviços, acompanhado de uma política externa que manteve como eixo os pontos básicos de “coexistência pacífica” da Conferência de Bandung, de 1956.

No entanto, assim como outros analistas do período inicial das reformas chinesas, eles desconsideram algumas características importantes da estratégia chinesa, que as diferenciam dos Tigres.

A multiplicação e reforçamento das empresas estatais, ao invés de sua privatização, é provavelmente a mais importante.

Além disso, o Estado chinês manteve o monopólio ou quase monopólio (embora com a concorrência de diversas estatais, para evitar a burocratização e promover o desenvolvimento científico e tecnológico) sobre alguns ramos econômicos, a exemplo do sistema financeiro, da exploração petrolífera e da produção e distribuição de energia.

Ou seja, ao invés de apenas uma estatal monopolista em cada um desses ramos, o Estado monopolista tem diversas estatais concorrendo entre si para desenvolver a produtividade. Portanto, diferentemente dos Tigres, a espinha vertebral da economia chinesa continuou sendo o complexo de empresas estatais, evitando tanto sua privatização quanto a ausência de concorrência, inclusive nos setores que o Estado mantém sob seu poder. Essas estatais também concorrem ativamente com as empresas privadas existentes no mercado, obrigando-se a elevar a produtividade, baixar custos e preços e atender de forma crescente não só ao mercado internacional como ao mercado doméstico.

São essas características que levaram o Partido Comunista e o Estado chineses a denominar seu sistema econômico, social e político como socialismo de mercado.

Isto é, um sistema que tem em conta que o Estado sozinho seria incapaz de avançar no desenvolvimento das forças produtivas do país e realizar a transição de um desenvolvimento incompleto do capitalismo para uma formação histórica sem propriedade privada.

Ou seja, sua prática e seus experimentos, assim como a prática dos demais países socialistas, comprovavam que o Estado, para desenvolver as forças produtivas de uma nação que não conhecera o pleno desenvolvimento histórico do mercado capitalista, teria que completar tal desenvolvimento com a participação de formas capitalistas, mas sob direção socialista. Isto se tornou a condição para realizar o sonho de desenvolver as forças produtivas ao ponto de atender a todas as necessidades sociais e tornar desnecessária a propriedade privada e a alienação do trabalho.

Foi na busca desse objetivo histórico que, apesar da crise mundial capitalista que assola o mundo desde 2007, a China conseguiu reduzir o ritmo de crescimento de seu Produto Interno Bruto de mais de 10% ao ano para cerca de 6% ao ano. Crescimento que, em termos mundiais, é somente inferior às taxas de crescimento da Índia (7,5% a.a.), mas é quase três vezes superior ao dos Estados Unidos, duas vezes o da Rússia e superior ao de todas as nações industrializadas da Europa. Em termos de paridade de poder de compra, o PIB chinês apresenta crescimento constante, demonstrando o afluxo da população chinesa aos bens e riquezas.

A China também já deixou de ser unicamente uma receptora de investimentos externos. Além de diversas empresas chinesas terem se tornado players ativos no mercado mundial, a exemplo da Baidu, que oferece segurança gratuita a programas de computadores, a China se tornou uma investidora internacional ativa. Desde 2015 investe no exterior mais do que recebe em investimentos externos, numa demonstração de vitalidade econômica e grande acumulação de reservas financeiras.

Paralelamente, antes acusada de depredar o meio ambiente com seu desenvolvimento industrial, a China se tornou paulatinamente um dos países mais ativos na substituição dos combustíveis fósseis por energias renováveis e no processo de reflorestamento, o que pode ser comprovado tanto pelas cidades em que as energias solar e eólica se tornaram as principais fontes, quanto pelas coberturas florestais que hoje margeiam inúmeras ferrovias de alta velocidade, como a que liga Beijing a Tianjin.

A suposição de que os grandes projetos chineses resultem na intensificação da produção e, portanto, num crescente uso de energias fósseis, tem sido desmentida pela própria experiência da recuperação ambiental chinesa. Mesmo assim, alguns comentaristas ainda afirmam que a China mantém inalterado seu papel de grande destruidora ambiental, já que seus projetos exigiriam grande extração de recursos minerais e a intromissão no meio ambiente.

No entanto, como a China tem avançado intensamente na recuperação do meio ambiente e na intenção de demonstrar que o crescimento econômico pode ser realizado sem causar, necessariamente, degradação ambiental, isso a está cacifando a colocar em prática projetos internacionais de grandes dimensões, com a atração de investidores de todo o mundo.

Assim, não por acaso ela também lidera o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura, que já conta com a participação de 80 nações. Todas estão interessadas em alavancar suas economias com o auxílio dos projetos chineses, tanto de infraestrutura que permite acesso mais fácil e barato a mercados da Europa, Oriente Médio e Ásia, incluindo o afluente mercado doméstico chinês, quanto de desenvolvimento científico e tecnológico.

Em termos objetivos, pode-se afirmar que a China está produzindo um impacto profundo no desenvolvimento econômico global, seja através do Banco de Investimento Asiático em Infraestrutura, do Fundo da Rota da Seda, do Banco de Desenvolvimento do BRICS, assim como dos investimentos em projetos produtivos e de infraestrutura em 112 países.

Segundo o presidente Xi Jinping, a China está apresentando para inúmeros países um modelo socialista que se torna, cada vez mais, “uma nova opção” para “países e nações que queiram acelerar seu desenvolvimento enquanto preservam sua independência”.

Os dois principais projetos chineses que sustentam essa “nova opção” são “Um Cinturão, uma Rota” (One Belt, One Road), lançado em 2013, e o Plano “Made in China 2025”, lançado em 2015.

Para o desenvolvimento chinês, tais projetos são estratégicos porque a China necessita manter altas taxas de investimento, reciclar os dólares que obtém com seus saldos comerciais e, ao mesmo tempo, elevar sua competitividade e seu consumo interno. Portanto, precisa ampliar sua presença em todo o mundo, garantindo acesso aos recursos naturais e a todos os mercados.

Na efetivação do Projeto “Um Cinturão, Uma Rota” a China já obteve a adesão de 126 países e 29 organizações internacionais. Ela pretende construir uma infraestrutura de alta qualidade, sustentável, resistente a riscos, que ajude os diversos países participantes a utilizarem plenamente a riqueza de seus recursos.

Ou seja, como afirmou Xi Jinping, que o projeto permita um crescimento de alta qualidade para todos, ecologicamente sustentável e compartilhado pelo mundo.

É evidente que há restrições ao projeto, não só dos Estados Unidos, mas também relacionadas a contradições entre países das regiões atendidas. Por exemplo, a Índia está preocupada com a construção do corredor ferroviário que atravessa a região de Caxemira, que disputa com o Paquistão.

Setores comerciais do Brasil se opõem à construção do corredor bi-oceânico, que visa interligar os litorais do Oceano Atlântico e do Oceano Pacífico no Cone Sul da América do Sul.

Já o plano “Made in China 2025”, lançado em 2015, faz parte do processo de desenvolvimento científico e tecnológico chinês, que cada vez mais o torna capaz deorientar a 4ª Revolução Industrial em todo o mundo. Ou seja, no curto espaço de 40 anos a China foi não só capaz de assimilar as três revoluções industriais comandadas pelos países ocidentais desde o século 19, mas também de assumir a liderança mundial no processo de desenvolvimento da nova revolução industrial em curso.

Além disso, estão certos os analistas que supõem que a China não quer mais ser conhecida por seus produtos simples e baratos e por sua produção em massa, com base em uma ampla oferta de mão de obra de baixo custo. Com seu plano “Made in China 2025”, ela busca dar um salto na estrutura produtiva de sua indústria, tendo por base as altas tecnologias.

Com isso, os setores-chaves da economia chinesa passarão a ser os equipamentos eletrônicos, microchips, máquinas agrícolas, novos materiais, energias renováveis, carros elétricos, ferramentas de controle numérico, robótica, tecnologia de informação, tecnologia aeroespacial, equipamentos ferroviários, equipamentos de engenharia oceânica, navios de última geração, e dispositivos médicos avançados.

Em outras palavras, até 2025 a China pretende reduzir sua dependência de tecnologias estrangeiras e consolidar sua participação na produção científica e tecnológica mundial.

Nesse sentido, a reação dos Estados Unidos ao avanço internacional da Huawei não se relaciona somente à concorrência mundial de celulares e equipamentos de telecomunicações. Tem como núcleo as disputas envolvendo a rede móvel 5G, a Inteligência Artificial e várias outras tecnologias desenvolvidas pelos centros de pesquisas e pelas empresas chinesas.

Em vista de tudo isso, alguns comentaristas reconhecem que a hegemonia ocidental, conquistada pelo capitalismo promotor da revolução industrial do século 19 em diante, está sendo substituída pela ascensão da China. Nesse processo, Brasil, Rússia, Índia e África do Sul que, com a China, formam o grupo BRICS, poderiam auferir em melhores condições a parceria da nova potência econômica mundial. Isso lhes permitiria não só um salto técnico na infraestrutura de transportes e de saneamento, mas também na meta civilizacional de retirar da miséria e da pobreza alguns milhões de habitantes, como fez a China ao elevar para patamares acima da pobreza quase um bilhão de habitantes, e avançar no desenvolvimento educacional, científico e tecnológico.

É lógico que Rússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão, que estão mais próximos das fronteiras ocidentais da China e formam, com ela, a Organização de Cooperação de Xanghai (OCX), tendo por objetivo assegurar segurança militar mútua, talvez tenham melhores condições de aproveitar os avanços produtivos, científicos, tecnológicos, de infraestrutura e ambientais chineses.

Não por acaso Irã, Afeganistão, Bielorrússia e Mongólia estão solicitando ingressar na OCX, especialmente tendo em conta a efetivação do projeto “Um Cinturão, Uma Rota” e a ampliação dos objetivos de cooperação da OCS, que passaram a incluir educação, ciência, tecnologia, saúde, proteção ambiental, turismo, mídia, esportes, ajuda humanitária e cultura, ao mesmo tempo em que estendem seus princípios para incluir governança global e fomentar relações internacionais.

Por outro lado, a OCX se tornou um dos principais parceiros da ASEAN, antes totalmente alinhada aos Estados Unidos. Incluindo Tailândia, Filipinas, Malásia, Singapura, Indonésia, Brunei, Vietnã, Mianmar, Laos, Camboja, Papua-Nova Guiné e Timor-Leste, a ASEAN e a OCX estabeleceram uma cooperação para a paz, estabilidade, desenvolvimento e sustentabilidade asiática, incluindo os itens de segurança, economia, finanças, turismo, cultura e proteção ambiental.

Em vista de tudo isso, não é totalmente estranho que os Estados Unidos de Donald Trump e de muitas corporações transnacionais não queiram admitir que o milagre chinês tenha sido realizado sob a liderança de um Partido Comunista, ainda por cima, num sistema econômico e social de socialismo de mercado, com uma democracia de caráter popular. E, mais ainda, que apesar de todas as medidas protecionistas de Trump, o saldo comercial chinês nas relações com os Estados Unidos tenha ultrapassado os US$ 400 bilhões em 2018. O importante é que, apesar disso, aprendam com a história e não apelem para a guerra nuclear como advogam alguns tresloucados.

*Wladimir Pomar é escritor e filiado ao Partido dos Trabalhadores. Autor de “O Enigma Chinês: capitalismo ou socialismo”. Artigo publicado originalmente na revista Esquerda Petista

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