Albano Nunes: A propósito da evolução da situação na Grécia

29/08/2015

Quando, ao contrário de esperanças abertas pelas eleições de 25 de janeiro – em que o povo grego expressou a rejeição das ruinosas e desumanas políticas dos “memorandos”, a condenação dos partidos que no governo conduziram o país a uma dramática situação e a sua profunda vontade de mudança – a Grécia se confronta com um terceiro programa de resgate, é oportuno procurar sintetizar os principais traços da evolução da situação desde aquelas eleições e os principais ensinamentos que comporta para a nossa própria luta por uma alternativa patriótica e de esquerda em Portugal e por uma outra Europa de cooperação entre estados soberanos e iguais em direitos, de progresso e de paz, uma Europa dos trabalhadores e dos povos.

Por Albano Nunes, no jornal Avante!, do PCP

● Nos momentos fundamentais do processo (que, como mostra a convocação de eleições antecipadas, continua em desenvolvimento), o PCP expressou a sua ativa solidariedade com os trabalhadores e o povo grego, com a sua resistência e luta e pelo respeito da sua soberania, e a sua firme condenação da violentíssima campanha de pressões, chantagens e ingerências da parte da União Europeia e demais instituições envolvidas, denunciando a posição do governo português e do Presidente da República de subserviente alinhamento com as posições da União Europeia (UE), e da Alemanha em particular. Através de posições do Comitê Central, de declarações do secretário geral e de outros dirigentes, da intervenção do seu Grupo Parlamentar na Assembleia da República e dos seus deputados no Parlamento Europeu, em iniciativas partidárias de vário tipo, em artigos no Avante! e no O Militante, a solidariedade do PCP com o povo grego foi uma constante.

Simultaneamente, sublinhando sempre que é aos comunistas, aos trabalhadores e ao povo grego que em primeiro lugar compete pronunciar-se sobre a situação interna da Grécia, o PCP demarcou-se claramente das posições políticas e ideológicas do Syriza e das incoerências, contradições e cedências do seu governo – que um após outro foi abandonando os compromissos que lhe permitiram capitalizar grande parte do descontentamento do povo grego e tornar-se a força mais votada nas eleições de janeiro – alertando desde o primeiro momento para a impossibilidade de solução dos graves problemas do povo grego sem romper, como pretendia o Syriza e o seu governo de coligação com o Anel, com os constrangimentos do euro e do processo de integração capitalista europeu.

A prática deu razão ao PCP

Com o acordo no Eurogrupo de 20 de Fevereiro e as ilusões que o acompanharam o governo grego, ao mesmo tempo que recorria a manobras de imagem e de engenharia semântica vazias de conteúdo (como a substituição de “troica” por “instituições”) entrou num caminho de sucessivas cedências e abdicações – do salário mínimo às privatizações – que assumiram uma nova e mais grave dimensão com o acordo de 13 de Julho na Cimeira do Euro que transformou o corajoso e inequívoco “não” às pretensões da troica no referendo de 5 de Julho, num “sim” do governo grego para não pôr em causa a participação da Grécia no euro e a negociação de um terceiro programa de resgate, aceitando para o efeito as mais humilhantes condições que agravarão ainda mais os sacrifícios do povo grego e a situação de autêntico protetorado da Grécia.

● Na sua análise deste processo o PCP põe o acento na crítica e condenação do gravíssimo comportamento da União Europeia do mais completo e arrogante desprezo pela vontade do povo grego e pela soberania da Grécia. E não subestima – antes pelo contrário, os acontecimentos mostraram como será duro o necessário caminho da ruptura de Portugal com os constrangimentos do euro e da UE – as enormes dificuldades encontradas pelo governo grego para concretizar o seu programa. A questão de fundo, porém, é que o governo grego não estava preparado, nem política nem ideologicamente para o confronto, não preparou o país para a saída do euro caso isso se tornasse inevitável para assegurar o respeito pela vontade de mudança do povo helênico. Aliás é notório que o Syriza e o seu governo nunca consideraram a mobilização das massas populares como um elemento indispensável à defesa dos interesses da Grécia junto da União Europeia e demais instituições. O próprio referendo, apresentado como gesto profundamente democrático, mais do que um passo para dar força a uma posição de confronto negocial teria resultado numa manobra do governo para descartar responsabilidades não fora o seu inequívoco resultado, tão mais significativo quando alcançado enfrentando uma brutal pressão externa, num quadro em que até à última hora o governo grego admitia apelar ao “sim” em troca de pequenas alterações da posição do Eurogrupo e com o Partido Comunista Grego a apelar ao voto nulo. E perante a chantagem de Schauble sobre uma “saída temporária da Grécia do euro”, o governo grego optou pela cedência, indo buscar à Nova Democracia e ao Pasok, precisamente os partidos derrotados em janeiro, a base de apoio parlamentar de que necessitava.

E o pior é que o Syriza parece pretender transformar a falta de coragem política e de princípios em “sentido de Estado” e a aceitação de um acordo em que disse “não acreditar” como uma decisão para evitar um mal maior que designou de “catástrofe nacional”. Este tipo de argumentação deve ser firmemente rejeitado porque, independentemente de outras considerações, vai no sentido pretendido pelas classes dominantes de que não há alternativa às brutais exigências do grande capital e das grandes potências.

Entretanto o processo de chantagens e pressões externas sobre a Grécia, não só prossegue como se torna ainda mais grave e asfixiante, como mostra o terceiro “memorando” aprovado no Eurogrupo de 14 de agosto. A Grécia continua constituída em campo de experiências para levar o mais longe possível as políticas da UE e do FMI de exploração dos trabalhadores e de espoliação da riqueza nacional, como é patente com a inédita criação do fundo de privatizações de cinquenta bilhões de euros gerido pela UE. A Grécia está a ser reduzida a uma autêntica colônia interna da União Europeia como (lembrando inconcebíveis declarações do ministro das finanças alemão) o é Porto Rico em relação aos EUA.

● O processo aberto na Grécia com os resultados das eleições de 25 de janeiro tem tido importantes repercussões no plano europeu e mundial.

Tornou-se ainda mais evidente a natureza de classe da integração capitalista europeia mostrando à sociedade que, como o PCP sempre afirmou, a UE da democracia e da solidariedade não existe nem nunca existiu, e que o brutal afrontamento das escolhas democráticas do povo grego não resulta do “afastamento de valores fundadores” a que seria necessário regressar ou de “imperfeições” no processo de integração e de atrasos num forçoso aprofundamento federalista, é antes produto da construção de um sistema de poder supranacional ao serviço do grande capital e das grandes potências, poder que é necessário enfrentar para assegurar o direito dos povos a decidir do seu próprio caminho.

Tornou também patente a crise na e da União Europeia, as sérias dificuldades e contradições em que se debate o processo de integração capitalista e a tendência para a classe dominante lhe responder com uma sempre maior centralização do poder econômico e do poder político, com o reforço dos seus pilares neoliberal, militarista e federalista. Nem sempre é fácil distinguir onde acaba a repartição de tarefas e começam reais divergências entre as diferentes frações da classe dominante. Em qualquer caso são de anotar como relevantes dissonâncias públicas entre o FMI e a União Europeia quanto ao modo de lidar com a catastrófica situação econômica e social grega e a questão da renegociação da sua dívida ou, quanto à dimensão das consequências de um Grexit [saída da Grécia da zona do euro] no sistema financeiro capitalista e na situação internacional, entre os EUA e a Alemanha, entre a França e a Alemanha, ou mesmo entre Merkel e Schauble. Quanto à social-democracia, pilar fundamental da construção europeia imperialista, profundamente desacreditada e em risco de desaparecimento na sua forma atual, ensaia demarcações com outros partidos do grande capital, que é bem expressa em Portugal na situação de identificação de PS, PSD e CDS nas principais questões estruturantes, que não pode ser ocultada por demarcações de cosmética.

A credibilidade do euro e da União Europeia, como necessidades indiscutíveis e sem alternativa, e espaço de “progresso” e “democracia”, sofreu neste período um grande rombo, talvez mesmo um golpe mortal. Caíram por terra dogmas e tabus que, em Portugal, praticamente só o PCP punha em causa.

Pretendeu-se dar uma lição à Grécia, castigar o povo grego pela sua audácia, mostrar que não só não há alternativa ao status quo como só pode piorar a situação de quem o puser em causa.

Pode, porém, dizer-se que, apesar da correlação de forças ainda desfavorável, se abriram novas possibilidades ao desenvolvimento da luta.

● O “europeísmo de esquerda” sofreu ele também um grande rombo, como o sofreu o movimentismo anarquizante e anticomunista que tem acompanhado grandes explosões de “indignação” e protesto popular. Depois de se terem esfumado as ilusões alimentadas em torno da vitória de Hollande em 2012 nas eleições presidenciais francesas, o entusiasmo em torno do Syriza, que em Portugal deu lugar aos mais ridículos copianços e mimetismos, empalideceu visivelmente. É ver o próprio Bloco de Esquerda (BE) que, depois de ter andado num corrupio de viagens a Atenas e de múltiplos convites a dirigentes do Syriza para ajudar à sua promoção em Portugal, marca agora distâncias e critica mesmo a falta de preparação para enfrentar as imposições alemãs e “europeias”. Mas registrando as cambalhotas do BE e de outros que surfaram a emergência e mediatização de um Syriza ou de um Podemos na Espanha (ao que parece em quebra de popularidade ) é necessário dizer que, até onde é possível observar, aquilo que é essencial na atitude do BE é a não assunção da natureza de classe da União Europeia e do processo de integração capitalista europeu. Em qualquer caso, trata-se de uma derrota ideológica significativa.

Quanto ao impacto no Partido da Esquerda Europeia, força oportunista ideológica e estruturalmente vinculada com a União Europeia, ainda em desenvolvimento, patenteia um grande embaraço.

● Em relação ao Partido Comunista da Grécia, cujo papel na luta dos trabalhadores e do povo grego o PCP sempre valorizou, surgem no debate interrogações em relação a aspectos do seu posicionamento político como no caso do referendo de 5 de julho.

É a cada partido comunista que compete definir em completa independência e autonomia a orientação que considera adequada para o seu país e, mesmo no caso de não a acompanhar, o PCP nunca enveredará pelo caminho da interferência nos assuntos internos de outro partido.

A solidariedade internacionalista dos comunistas portugueses é uma solidariedade de princípio que diferenças de opinião e divergências não põem em causa.

Mas é uma evidência que o PCP não pode subscrever posições que, a pretexto da solidariedade, possam ser interpretadas como de apoio à política e ação concreta de outro partido e muito menos de apoio a uma linha ideológica em que não se revê e a uma prática de relações entre partidos comunistas que considera prejudicial para a unidade do movimento comunista e revolucionário internacional. Foi partindo desta ordem de considerações que o PCP recentemente não subscreveu uma “Declaração conjunta de solidariedade com o KKE”.

Da experiência grega nos últimos meses muitas lições há a tirar. Isso compete obviamente em primeiro lugar ao PCG que tirará as que considere mais adequadas. O PCP tirará as suas, com respeito pelas análises de outros partidos, mas em completa independência de juízo e, como sempre, voltado para as tarefas que a luta coloca no nosso próprio país.

O PCP rejeita tanto perversas tentativas de identificar a sua solidariedade com os trabalhadores e o povo grego com apoio ao governo do Syriza (partido com que aliás não tem relações) como insultuosas conotações que alguns pretendem estabelecer entre o que designam de “governo da esquerda patriótica” do Syriza e a alternativa patriótica e de esquerda do PCP.

O PCP considera necessário alertar para tentativas de utilizar as incoerências, contradições e cedências do governo do Syriza para justificar todo um conjunto de teses – como sejam a negação de etapas na luta revolucionária, a luta pelo socialismo como tarefa imediata e universal, a negação da questão nacional e das particularidades nacionais, o afunilamento da política de alianças da classe operária negando ou subestimando a importância da luta antimonopolista e anti-imperialista e da luta pela paz – considerando que aqueles partidos que não as acompanham são partidos que apenas pretendem “humanizar” ou “gerir” o capitalismo quando lutam por políticas alternativas que, inseridas e inseparáveis do socialismo, não o colocam como tarefa imediata.

O PCP, respeitando os princípios do movimento comunista, não interfere na vida de outros partidos nem pretende dar-lhes lições. E nunca deu ou dará qualquer passo que possa ser usado para prejudicar outro partido comunista pelos seus adversários e inimigos. Mas também não aceita lições de ninguém e rejeita frontalmente toda e qualquer tentativa de ingerência nos seus assuntos internos, nomeadamente no que respeita à Revolução de Abril, ao seu Programa de “Uma democracia avançada, os valores de Abril no futuro de Portugal”, à alternativa patriótica e de esquerda que propõe ao povo português e ao seu projeto de sociedade socialista.

● A “questão Grécia” vai continuar a ter inevitáveis incidências internacionais, nomeadamente em Portugal, e teremos de continuar a acompanhá-la de perto, nas suas linhas fundamentais, pois há experiências e lições que são de grande importância para a reflexão e intervenção política do nosso Partido, nomeadamente no que respeita à luta pela renegociação da dívida e ao estudo e preparação do nosso país para se libertar da submissão ao euro. Uma coisa é desde já uma certeza: os acontecimentos dos últimos meses confirmam as análises e teses fundamentais do PCP em relação ao euro e à União Europeia e que a solução dos problemas nacionais e a salvaguarda da independência e soberania nacional, uma alternativa patriótica e de esquerda, exigem a libertação de Portugal dos constrangimentos do euro e do processo de integração capitalista europeu, bem como do domínio do capital monopolista.

 

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