Opinião
Agronegócio vencido pela luta camponesa
As sementes da luta em defesa das populações camponesas e da soberania dos povos germinam apesar da violência e o poder financeiro dos seus inimigos. Foi divulgado em Portugal, através da edição local do jornal “Le Monde Diplomatique” de junho/2018, um extenso artigo escrito por Stefano Liberti ([1]) sobre “um projeto de açambarcamento de terras disfarçado de promessa de desenvolvimento” com o título “Os camponeses moçambicanos obrigam a agroindústria a recuar”.
Por Zillah Branco
É bastante gratificante ler em um jornal de grande circulação na Europa e em vários países do mundo, a explicação clara de que “os agroindustriais do Sul assemelham-se aos do Norte: sonham com lucros fáceis desenvolvendo uma agricultura comercial em detrimento dos camponeses que produzem gêneros alimentares. Assim nasceu o projeto ProSavana, que associa o Japão e o Brasil em Moçambique. Mas a resistência inédita dos camponeses dos três Estados permitiu parar a operação.”
É preciso recordar que Moçambique conquistou a sua independência na sequência da Revolução dos Cravos de Abril de 1974. O primeiro Presidente da nação livre foi Samora Machel, líder da luta revolucionária anticolonial, que estruturou um governo democrático capaz de defender com dignidade a soberania nacional, até ter sido morto em misterioso acidente aéreo em 1986. A Constituição de Moçambique, tal como de outros países africanos, estabelece que “a terra pertence ao Estado e não pode ser vendida”. Esta prerrogativa, estabelecida em 1975 com a Independência, “concede às comunidades ou aos indivíduos um direito de uso e de aproveitamento da terra (DUAT) para cultivarem as suas pequenas parcelas agrícolas,” produzindo o necessário para a alimentação local.
Moçambique enfrentou anos de conflito interno provocados pela Renamo contra o partido FRELIMO governante. Machel foi sucedido na Presidência por Joaquim Chissano até 2005 quando é eleito Armando Gabuza que apoiou o projeto ProSavana criado por “agências de cooperação” japonesas e brasileiras para implantar explorações agrícolas comerciais no continente africano.
Ao mesmo tempo em que, sob pressão externa Moçambique era manipulado por “cooperantes” que acobertam investidores e aventureiros em busca de lucros fáceis ligados aos grupos agroalimentares e às altas finanças onde aparecem pessoas ligadas aos bancos Sachs, Merrill Lynch e outros ([2]), a população camponesa organizada durante a guerra colonial e os 10 anos de governo de seu líder Samora Machel formou a União Nacional de Camponeses – UNAC – que promoveu a mobilização popular a partir da aldeia de Nakari para resistir à implantação do projeto ProSavana conhecido como uma corrida às terras africanas substituindo as culturas tradicionais por “culturas rentáveis” (soja, algodão e milho) destinadas ao mercado mundial – apresentado pelo grupo Agromoz, financiado por capitais portugueses, japoneses da Agência Japonesa de Cooperação Internacional (JICA) e brasileiros da Agência Brasileira de Cooperação (ABC).
Escreve Stefano Liberti: “Por detrás da ‘modernidade’ de uma cooperação Sul-Sul ‘ao serviço do desenvolvimento’ o ProSavana destrói as relações de produção nos campos, transforma os pequenos camponeses em contratados das grandes empresas e faz de Moçambique uma placa giratória de produtos agroindustriais a exportar no mundo inteiro. Concebido em 2009 na Cimeira do G8 de Aquila, na Itália, o projeto pretende reproduzir uma experiência lendária da savana tropical úmida de Mato Grosso. O projeto foi elogiado em novembro de 2011, por Hillary Clinton, secretária de Estado, e o magnata Bill Gates em 2011 quando o projeto foi apresentado no Forum de Alto Nível sobre Eficácia da Ajuda na Coreia do Sul.( [3])”
Entretanto, em 2012, na comunidade de Wuacua próxima de Nakari, escreve S.Liberti, “funcionários públicos foram pedir aos habitantes que assinassem alguns documentos prometendo verbas em dinheiro e a realização de projetos sociais.” Eles não eram alfabetizados e não perceberam que na verdade estavam renunciando ao DUAT e eram forçados a abandonar as terras. “Pouco depois a Agromoz – uma empresa de capitais mistos brasileiros e portugueses, com o envolvimento de uma companhia moçambicana, conseguiu uma concessão de 9 mil hectares, para o cultivo de soja.” (…) “Wuacua hoje é uma aldeia fantasma, cercada por plantações da Agromoz. Os vigilantes recrutados pela empresa não deixam ninguém aproximar-se. A terra está nua, à espera de ser semeada.”
Os pequenos agricultores de Nakari, segundo S. Liberti, “souberam pelos jornais, referido por Jeremias Vunjane da Ação Acadêmica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais (Adecru) de Maputo, que nos bastidores da “parceria inovadora” (atuava a GV Agro ligada à Fundação Getúlio Vargas, dirigida por Roberto Rodrigues, que foi ministro da agricultura no Brasil e consultor da empresa mineira Vale que extrai carvão na região de Tete) a quem se deve o paralelo entre o Mato Grosso e o Norte de Moçambique e a lenda de um desenvolvimento das monoculturas nestas “terras inexploradas”. ( [4])
Alertados pelos membros das associações camponesas a nível nacional, UNAC, que acompanhavam as opiniões de técnicos do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas como o antigo relator Olliver De Shutter ([5]), entraram em contato com as organizações similares no Brasil e no Japão, investigaram os objetivos comerciais, financeiros e aventureiros que estão por trás deste açambarcamento das terras onde há plantios para alimentação e da destruição da cultura camponesa na África, tal como já ocorre no Brasil e em outros países em que impera o agronegócio. Stefano Liberti refere o depoimento de Carlos Ernesto Augustin, da Associação dos Produtores de Algodão do Mato Grosso: “Moçambique é um Mato Grosso no meio de África, com terras gratuitas, poucos obstáculos ambientais e custos de transporte das mercadorias para a China muito mais baixos”([6]).
Jeremias Vunjane, da Adecru, associação de Maputo, relata (a Stefano Liberti) que em novembro de 2012 uma delegação de cinco pessoas ligadas à Adecru e à Aram (Associação Rural de Ajuda Mútua) viaja para o Brasil para conhecer a situação de Mato Grosso onde ficaram em estado de choque ao percorrerem centenas de quilômetros plantados com soja, sem árvores e sem comunidades camponesas. “O território está todo desarborizado. Não há nenhuma forma de vida, porque a utilização de pesticidas e de adubos criou um deserto. A perspectiva de ver a nossa terra transformada numa paisagem tão vazia pareceu-nos um pesadelo”.
Quando as associações de camponeses conheceram o Plano Diretor, compreenderam que estavam a ser enganados. O documento elaborado pela GV Agro e por duas empresas de consultoria japonesas, a Oriental Consulting e a NTC International fala em “desviar os agricultores das práticas tradicionais de cultivo e de gestão das terras para práticas agrícolas intensivas baseadas em sementes comerciais, insumos químicos e títulos fundiários privados”, deixando clara a intenção destruidora da vida camponesa local.
Situada perto de Wuacua está a comunidade de Nakari, do distrito de Malema, onde está presente a União Nacional de Camponeses (UNAC), de Moçambique que, pela palavra de seu representante Dionísio Mepoteia, entrevistado por S. Liberti, apoiando a decisão dos camponeses de recusarem o açambarcamento das terras da comunidade declara: “O governo está num impasse. A nossa luta permitiu-nos ter uma primeira vitória histórica. Impedimos a pilhagem e reafirmamos que a terra só nos pertence a nós, que a cultivamos há muitas gerações”.
A mobilização, que começou por ser um movimento local, desencadeou uma campanha de resistência internacional. A história da expropriação de terras de Wuacua passa de boca-a-boca a desafiar o governo. “Um conjunto de 23 organizações moçambicanas escrevem uma carta aberta aos governos do Japão, Brasil e Moçambicano de denúncia ( [7]) e cerca de 40 organizações internacionais co-assinam o documento.(…) O ProSavana é suspenso” , conclui Stefano Liberti.
[1] O autor é jornalista e realizador. Esta reportagem recebeu uma bolsa do Pulitzer Center on Crisis Reporting.
[2] cf.Ward Anseeuw, Liz Alden Wily, Lorenzo Cotula e Michael Taylor, 2012 e Bases de dados Land Matrix.
[3] Jun Hongo, “ODA transforming Mozambique”, The Japan Times, Tóquio, 06/01/12
[4] Cf. Alex Shankland e Euclides Gonçalves “Imagining agricultural development in South-South Cooperation: The contestation and transformation of ProSavana”, World Development, vol.81, Amsterdão, 05/2016
[5] Oliver Shutter, “How not to think of land-grabbing: three critiques of large scale investments in farmland”, The Journal of Peasant Studies, vol.38, Routledge, RU, 2011
[6] Patricia Campos Mello, “Moçambique oferece terra à soja brasileira”, Folha de S. Paulo, 14/08/2011
[7] “Open letter from Mozambique civil society organisations and mouvements…”03/06/2013