Opinião
A única função das Forças Armadas é a defesa militar do país, qualquer extrapolação é atentado contra a democracia
É preciso escrever com letras de ouro na Constituição que a desobediência ao poder constituído é crime, escreve o dirigente comunista José Reinaldo Carvalho
Por José Reinaldo Carvalho (*)
A tarefa mais importante das forças democráticas e progressistas brasileiras ao longo de todo o ano de 2022 foi assegurar a vitória de Lula no embate contra o ocupante do Palácio do Planalto, candidato à reeleição que pretendia, à frente das correntes mais reacionárias da sociedade brasileira, impor ao país um regime de extrema-direita.
Esta missão das forças democráticas e progressistas foi cumprida.
Agora, a tarefa imediata mais importante é garantir a posse do presidente eleito e a sua governabilidade.
Tal como no triunfo eleitoral, é indispensável o empenho para unir amplas forças políticas. Esta missão também será cumprida. A liderança de Lula, sua experiência política, seu talento de estadista, sua habilidade e a flexibilidade no trato com as forças que poderão agregar fatores de estabilidade também contarão muito.
É compreensível a cautela na condução de problemas sensíveis, delicados e complexos, como o manejo da economia e das finanças, numa época de predomínio do capital monopolista financeiro, sanguessuga das energias da nação e inimigo do desenvolvimento econômico e social virtuoso.
O mesmo é válido quanto ao diálogo com as Forças Armadas e a condução dos entendimentos sobre a nomeação do ministro da Defesa e dos comandos das Forças. Aqui todo o cuidado é pouco, pois se trata de um campo minado, monopolizado por forças antidemocráticas, a maioria das quais contaminadas pela linha política de extrema-direita e por um visceral ódio ao progressismo.
Contudo, a cautela, a prudência, o equilíbrio no trato da questão militar não podem traduzir-se em cedência nem subordinação à arrogância e à tutela das corporações fardadas e armadas.
Num mundo normal, numa democracia estável, a nomeação do ministro da Defesa e dos comandos não deveria ser motivo de celeuma. E não deveria haver dúvidas sobre a quem corresponde a prerrogativa da nomeação. Como disse o nosso colega Jeferson Miola, um dos mais brilhantes colunistas do Brasil 247, seria simples. “Simples assim: Lula manda e as Forças Armadas obedecem”. Afinal, “Lula foi eleito pela soberania popular para exercer o comando supremo das Forças Armadas do Brasil”, escreve o autor, que é também um dos principais analistas na mídia brasileira sobre a chamada questão militar.
Tal simplicidade está ligada ao trivial conceito da obediência das Forças Armadas ao poder civil e democrático, o qual deveria ser ensinado como beabâ de educação moral e cívica e das academias militares.
Mas no Brasil o militarismo como ideologia e orientação política, traduzido como intervencionismo e golpismo, tornaram letra morta as noções democráticas mais elementares.
Desde a Proclamação da República, em 1889, as Forças Armadas sempre invocaram pretextos “constitucionais” em busca de justificativas para sua tutela sobre a nação e o intervencionismo golpista. Valeram-se de ambiguidades nos textos constitucionais e ainda hoje se apegam ao famigerado artigo 142 da Carta de 1988 para se impor aos poderes republicanos e pairar qual espada de Dâmocles sobre a vida democrática brasileira.
Este traço, mesclado com todo tipo de ranço contra as forças progressistas, furor anticomunista ancestral e antediluviano, carreirismo, corporativismo e reacionarismo tout court, acentuou-se durante o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, que cultivou e cultiva o golpismo e buscou cooptar a maioria dos fardados, incluindo o Comando, com promessas de perpetuação do seu status como manda-chuvas da nossa precária República e quase nulo sistema democrático. O caráter obediente da instituição militar tinha sido um princípio constitucional da Carta de 1824, a primeira ainda no alvorecer da Independência, outorgada por Pedro I: “A força armada é essencialmente obediente”, rezava o texto. É de pasmar que a partir da República, o conceito de obediência passasse a sofrer mudanças. A Carta de 1891, a primeira republicana, estabelece que “a Força Armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei”. Esta expressão final, alusiva aos limites da lei, foi a primeira brecha aberta para atribuir às Forças Armadas prerrogativas intervencionistas, mormente ligadas ao “direito legal” de garantir a lei e a ordem. Ao longo da vida republicana brasileira, as Forças Armadas se autonomizaram em relação ao conjunto do Estado nacional, tornaram-se uma força acima dele para agir quando julgassem necessário contra as lutas do povo. Durante a ditadura militar, as Forças Armadas erigiram-se em garantidoras da segurança nacional , conceito paradigmático da doutrina de guerra ao povo, que perpetrou mediante torturas, assassinatos e outros crimes de lesa humanidade, pelos quais nunca foram punidas nem pediram desculpas à nação vilipendiada e vitimada.
Durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), as Forças Armadas, mancomunadas com o governo Sarney, já no ocaso da efêmera democracia da Nova República, exerceram todo tipo de pressão sobre os constituintes para garantir a tutela fardada e armada sobre os Poderes. O então ministro do Exército – a existência de um Ministério do Exército, ao lado do da Marinha, da Aeronáutica e do Estado Maior das FFAA era uma excrescência dos tempos do poder militar – utilizou de toda a força e de artimanhas para garantir a tutela e o caráter de “poder moderador” das Forças Armadas, ainda que a expressão não fosse utilizada.
A resistência democrática no seio da Constituinte, encabeçada pela esquerda (PT, PCdoB e setores patrióticos do PDT) impediu que se mantivesse um tal entulho autoritário na Constituição Cidadã, mas não foi suficiente para redigir um artigo dentro do figurino democrático, disso resultando o monstrengo que é o artigo 142 da Constituição e a subsequente legislação complementar sobre garantia da lei e da ordem.
Posteriormente, as Forças Armadas nunca aceitaram na prática a extinção dos ministérios militares e a existência de um Ministério da Defesa, criado em 1999. Consideram este ministério uma extensão dos comandos militares, seu titular um despachante dos interesses da corporação armada e não uma necessidade estratégica da defesa nacional.
A democracia brasileira será sempre mutilada enquanto prevalecer a concepção militarista de tutela das Forças Armadas sobre os Poderes republicanos. Ainda é uma tarefa inconclusa o estabelecimento de normas regentes do princípio de que as Forças Armadas têm por função a defesa militar do país contra a agressão externa; são obedientes ao governo e à autoridade suprema do chefe de Estado, o presidente da República. É preciso escrever com letras de ouro na Constituição que a desobediência ao poder constituído é crime. Decerto, as Forças têm uma vida interna a gerir, mas a administração geral e superior destas é incumbência do chefe de Estado. Outro princípio consagrado da vida democrática é que é vedado terminantemente às Forças Armadas intervir na vida política do país, sendo crimes também as conspirações visando ao golpe, a contestação ou desestabilização dos governos constitucionais. Deveria ser regra de ouro que o golpe de Estado ou a tentativa de golpe são crimes contra a soberania popular.
As Forças Armadas são instituições indispensáveis ao país, circunscritas à sua função de defensoras em face de agressões externas. Qualquer extrapolação transforma-as em óbice à estabilidade democrática. E é indispensável que isto seja coibido.
(*) Jornalista, membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB e secretário-geral do Cebrapaz