A China e o Mundo
A política externa da China é benéfica a um mundo de paz, desenvolvimento e cooperação
“O centenário do Partido Comunista da China é motivo de comemoração também para os povos que no mundo lutam para afirmar sua soberania, aspiram ao desenvolvimento e à paz”, escreve José Reinaldo Carvalho (*), em mais um artigo da série dedicada ao centenário do Partido Comunista da China (PCCh)
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No dia 1º de Julho, transcorre o 100º aniversário da fundação do Partido Comunista da China, um partido marxista-leninista que foi capaz de durante a sua centenária trajetória ater-se aos princípios originais promovendo ao mesmo tempo a “chinificação” da teoria revolucionária, percorrendo um caminho próprio, marcado pelo triunfo da Revolução da Nova Democracia (1949) e pela construção do “socialismo com peculiaridades chinesas”.
Nesse percurso destacaram-se grandes líderes, nomeadamente Mao Tsetung, um dos fundadores do PCCh, comandante do Exército Popular de Libertação e condutor da fase inicial de construção do poder popular; Deng Xiaoping, o arquiteto da política de Reforma e Abertura, iniciada em 1978, e o atual presidente Xi Jinping, sob cuja direção a construção do socialismo no país asiático ingressa em uma “nova era” e aumenta a projeção do país no mundo.
No plano externo, a República Popular da China atua contemporaneamente com grande assertividade. No exame dessa nova realidade, vale muito conhecer as origens e o sentido histórico da política externa chinesa, formulada por outro dirigente de envergadura da velha guarda, Chou Enlai. O centenário do Partido Comunista da China é motivo de comemoração também para os povos que no mundo lutam para afirmar sua soberania e , aspiram ao desenvolvimento e à paz.
Revolução, a origem
A primeira etapa da nova política externa chinesa foi percorrida a partir do triunfo da revolução popular e a fundação da República Popular da China, em que predominou a linha de defesa da independência nacional. A vitória da revolução pôs fim a uma época em que a China foi humilhada por tratados internacionais e fragmentação. A revolução rompeu com esse passado.
Desde a primeira Guerra do Ópio, em 1840, as potências colonialistas forçaram o governo no final da dinastia Qing a subscrever tratados desiguais, segundo os quais essas potências se apoderaram de partes do território chinês, impuseram concessões, esferas de influência, portos abertos, extraterritorialidades e tratamento unilateral de nação mais favorecida.
Na sequência da fundação da República Popular da China, o país estabeleceu um novo tipo de relações diplomáticas, com o pressuposto da salvaguarda da soberania nacional, integridade territorial, criação de um entorno geopolítico pacífico com os países vizinhos, estabelecimento de relações de amizade e apoio mútuo com os países em vias de desenvolvimento, integração ao campo socialista, aliança com a URSS e democracias populares, defesa da paz mundial e coexistência pacífica com todos os países.
A síntese desses princípios pode ser encontrada no enunciado sobre política externa incorporado ao programa comum do regime de Nova Democracia assumido pela Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, que era uma organização de frente única, em 30 de setembro de 1949, um dia antes da proclamação da República Popular da China: “Os princípios da política externa da República Popular da China consistem em salvaguardar a independência, a liberdade e a integridade soberana e territorial do país, apoiar a paz duradoura internacional e a cooperação amistosa entre os povos e opor-se à política imperialista de agressão e guerra.” “A República Popular da China se unirá a todos os países e povos amantes da paz e da liberdade do mundo inteiro.” “A República Popular da China se porá ao lado do campo da paz e da democracia internacional, para opor-se à agressão imperialista e defender a paz mundial duradoura”.
Cinco anos depois, em 1954, a primeira Constituição da República Popular da China proclamou: “Nos assuntos internacionais nosso princípio firme e invariável radica em trabalhar pelo nobre objetivo da paz mundial e do progresso humano.”
Os cinco princípios de coexistência pacífica
Os cinco princípios de coexistência pacífica foram apresentados pela primeira vez por Chou Enlai, primeiro-ministro da China, em uma reunião com a delegação governamental da Índia, em visita à China em 1953. Disse o primeiro-ministro na ocasião: “A partir de sua fundação, a Nova China já determinou os princípios a seguir no tratamento das relações com a Índia, princípios que consistem no respeito mútuo à soberania e integridade territorial; a não intervenção de um país nos assuntos internos de outro; igualdade; benefício recíproco e coexistência pacífica.
Em abril de 1955, Chou Enlai afirmou na Conferência de Bandung (Indonésia), a Conferência Asiático-Africana, com a participação de 29 países, precursora do histórico Movimento dos Países Não Alinhados: “A China desenvolve suas relações diplomáticas e intercâmbios econômicos e culturais com os demais países, atendo-se firmemente a sua política externa independente e aos cinco princípios: 1) Respeito mútuo à soberania e integridade territorial; 2) Não agressão; 3) Não intervenção de um país nos assuntos de outro; 4) Igualdade e benefício mútuo e 5) Coexistência pacífica.
Esses princípios se tornaram a base conceitual das relações internacionais da China e estão inscritos na Constituição promulgada em 1982, princípios vigentes ainda hoje.
A perspectiva de Deng
Sob a liderança de Deng Xiaoping, a defesa da independência da China seguia como a base da política externa. No discurso de abertura do 12º Congresso do Partido Comunista da China, em 1982, ele declarou: “Os assuntos da China devem ser manejados à luz de suas próprias condições e com os esforços de seu próprio povo. A independência e a autoestima foram, são e serão nosso ponto de apoio. O povo chinês aprecia altamente sua amizade e cooperação com outros países e povos; porém, valoriza em maior medida sua independência e seus direitos soberanos conquistados mediante uma prolongada luta. Nenhum país deve acalentar a ilusão de converter a China em seu apêndice nem fazer com que a China engula o fruto amargo de suportar um atentado contra seus interesses.”
Em 1989, quando ocorreram os episódios da Praça da Paz Celestial, com a China sob intensa pressão internacional em torno do tema da democracia e dos direitos humanos, Deng declarou: “A soberania e a segurança nacional devem ser sempre a prioridade e acerca disso temos mais clareza do que nunca.” E mais: “A China não permitirá jamais a nenhum país que intervenha em seus assuntos internos.”
A China combate o princípio estadunidense e das demais potências ocidentais de que os direitos humanos formais têm supremacia sobre a soberania dos Estados nacionais. Esta concepção das potências ocidentais atropela a Carta da ONU e o Direito Internacional e o princípio da não intervenção nos assuntos internos de um país sob qualquer pretexto.
A defesa intransigente do princípio da independência se baseia no fato de que a China se considera um país multiétnico unitário. A unidade nacional e a integridade territorial são premissas para a realização da política externa independente da China.
A etapa de desenvolvimento nacional
Com a política de reforma e abertura, em que a China passou a percorrer o caminho do desenvolvimento nacional impetuoso, mantendo vigentes os princípios assentados imediatamente após a fundação da República Popular da China, os cinco princípios da coexistência pacífica e os enunciados da Constituição, a China passou a ser mais participativa naquilo que designa por “diplomacia multilateral.
O país estabeleceu relações diplomáticas, econômicas, comerciais, culturais com todos os países, com base nos cinco princípios da coexistência pacífica e no acordo explícito sobre o reconhecimento de que no mundo só existe uma China.
A China passou a participar integralmente nas instituições internacionais e a promover uma ativa diplomacia multilateral em todos os campos. Cito abaixo as principais instituições, fóruns e grupos.
ONU, com todas as suas instâncias, inclusive no Conselho de Segurança, Assembleia Geral, Comissões, Agências e Missões de Paz; OMC – Organização Mundial de Comércio; Asean – Associação das Nações do Sudeste Asiático (sigla em inglês); Apec – Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (sigla em inglês); Fórum de Boao – Fórum de cooperação econômica no âmbito asiático, aberto a outras regiões. Boao é uma localidade da província chinesa de Hainan, no Sul; Focac – Fórum de Cooperação China-África, sigla em inglês; Fórum China-Celac (Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos); OCX – Organização para a Cooperação de Xangai; Brics – Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul; G-20 – Grupo que reúne as 20 maiores economias do mundo.
Isto levou a China a tomar parte ativa na solução de problemas globais e regionais, no que se inclui a luta contra o terrorismo, as pandemias, a promoção dos direitos humanos, o controle de armas e os esforços pelo desarmamento nuclear, a solução de conflitos regionais, adesão e cumprimento das metas do milênio da ONU sobre o desenvolvimento humano, a adoção de normas e práticas para enfrentar as mudanças climáticas, o fomento ao desenvolvimento sustentável.
Desde então, se tornou algo rotineiro a presença da China nas Cúpulas de chefes de Estado e Governo, para o que concorreu a decisão do Partido Comunista da China e do governo chinês de desenvolver relações pacíficas, de cooperação em é de igualdade com os países desenvolvidos e potências, como EUA, Japão, Alemanha, França, Rússia e blocos como a União Europeia.
Paralelamente a isso, as relações internacionais da China incrementaram os vínculos de solidariedade e cooperação com países em desenvolvimento.
Para além disso, a China moderna desenvolve uma diplomacia multidimensional, abarcando setores como economia, cultura, educação, humanidades para promover a convergência de civilizações, assuntos militares, intercâmbios parlamentares, reações partidárias etc.
A política externa atual
A partir do 19º Congresso do Partido Comunista da China, realizado em outubro de 2017, a China desenvolve a diplomacia da nova era, voltada para a construção de uma comunidade mundial de futuro compartilhado por toda a humanidade, em que aparecem como tarefas prioritárias manter a diplomacia de paz, a coexistência pacífica e a construção de uma ordem internacional justa em uma situação instável e carregada de ameaças. São políticas que se inscrevem na meta maior do Partido Comunista da China para a atual etapa do desenvolvimento nacional, que consiste em lutar pela realização do sonho chinês, a construção do bem-estar do povo chinês associado com o de todos os povos, a prosperidade comum.
Naquele Congresso, o secretário geral do Partido, Xi Jinping, afirmou: “Fizemos mais progressos na diplomacia chinesa em todas as frentes. Temos feito esforços globais na busca da diplomacia de um país importante com características chinesas, avançando assim a agenda diplomática da China de uma forma abrangente, multidimensional e multifacetada, criando um ambiente externo favorável para o desenvolvimento da China” (…) “A China defende o desenvolvimento de uma comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade e tem incentivado a evolução do sistema de governança global, tendo por eixo a ONU. Com isso, vimos um aumento ainda maior na influência internacional da China” (…) “A China tem dado grandes novas contribuições para a paz global e o desenvolvimento”.
Estes enunciados do 19º Congresso do Partido Comunista da China correspondem a uma fase de maior presença chinesa no mundo, na sua transformação em grande protagonista da ordem mundial, sua transformação em maior força econômica e comercial do mundo, grande investidor externo, grande destino de investimentos externos diretos, sua transformação de maior parceiro econômico e comercial de vários países. Uma fase de maior assertividade e de “multilateralismo verdadeiro”, em contraste com o propalado multilateralismo do imperialismo estadunidense, que não passa de retórica e de um estratagema para criar uma frente de países aliados na execução de uma política antichinesa.
A contenção estratégica da China é a essência da atual política externa dos Estados Unidos, no que as administrações de Trump e Biden se diferenciam apenas por suas nuances. Para além da guerra comercial, os Estados Unidos buscam fomentar a instabilidade na China, instrumentalizando o separatismo do Tibet e no Xinjiang, tumultos em Hong Kong e a independência de Taiwan, brandindo temas como direitos humanos e democracia, etnias e liberdade religiosa.
No plano geoestratégico e militar, os EUA estão fortemente engajados em provocações no Mar do Sul da China.
Na economia, as políticas de investimentos anunciadas pelo governo Biden, têm por objetivos proclamados, impedir que a China supere os EUA na competição econômica e tecnológica. Na verdade, os EUA pretendem pôr um freio ao desenvolvimento socioeconômico da China, cuja réplica tem consistido na afirmação de que não tem o tem o objetivo de superar os EUA, não alimenta ambições hegemônica, os e afirma que não abre mão em nenhuma circunstância do direito ao desenvolvimento e à conquista do bem-estar do povo chinês.
As relações com o Brasil
As relações entre o Brasil e a China começaram no início do século 19 e continuaram até 1949, quando foram interrompidas. Um marco importante da tentativa de restabelecimento de relações foi a visita no ano de 1961 do então vice-presidente do Brasil, João Goulart, a convite do governo chinês, que estava em processo de consolidação das conquistas de sua revolução.
O Brasil de então começava a praticar uma política de não alinhamento automático aos Estados Unidos e buscava se posicionar de maneira independente. O presidente brasileiro da época, Jânio Quadros, embora conservador no plano interno, defendia a adoção de uma “política externa independente”. O Brasil dava os primeiros passos para a interação internacional voltada para os países em desenvolvimento e os esforços iniciais para a instauração de uma “nova ordem econômica internacional”.
Jango foi recebido calorosamente pelo povo chinês e pelo líder Mao Tsé-Tung.
As relações diplomáticas foram restabelecidas em 15 de agosto de 1974. Desde então, os laços bilaterais se desenvolvem cada vez mais.
A China é, desde 2009, o principal parceiro comercial brasileiro e o Brasil constituiu-se, em 2013, no oitavo parceiro comercial da China, o primeiro entre os membros do Brics. A China tornou-se também o principal investidor externo direto no Brasil, investimento de importância estratégica para o desenvolvimento econômico porque gerador de crescimento, emprego e renda. As relações comerciais passaram a ser uma importante alavanca para o Brasil ocupar papel relevante na economia internacional. As relações econômicas e especificamente comerciais são favoráveis ao Brasil. A abertura do mercado chinês favorece o comércio exterior brasileiro. Principalmente o setor do agronegócio brasileiro se beneficia do crescimento da demanda chinesa.
Além das áreas tradicionais econômica e comercial, a cooperação bilateral estendeu-se para novas áreas, tais como finanças, alta tecnologia, infraestrutura, minas e energia, aeroespacial, entre outras.
As relações bilaterais evoluíram e foram galgando sucessivamente novos patamares. Em 1993, os dois países estabeleceram a Parceria Estratégica, a primeira que a China firmou com um outro país em desenvolvimento. Em 2012, as relações sino-brasileiras foram elevadas ao status de Parceria Estratégica Global e o Brasil se tornou o primeiro país latino-americano a estabelecer esta categoria de parceria com a China.
Durante os primeiros 15 anos do século XXI, as relações entre a China e o Brasil viveram o seu melhor momento histórico. Com a cooperação bilateral, Brasil e China se afirmaram como economias importantes. Juntos, principalmente no âmbito do Brics e da ONU, defenderam no plano global os interesses dos países em desenvolvimento.
As relações sino-brasileiras se aperfeiçoaram e alcançaram bom nível de institucionalização. Um dos principais instrumentos para este fim é a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban). Também desempenha papel ativo para a elevação do nível de relações o Diálogo Estratégico Global entre os ministros das Relações Exteriores, criado no âmbito da Parceria Estratégica Global.
Essas relações se desenvolveram e consolidaram com as visitas presidenciais recíprocas. Foram memoráveis as visitas dos ex-presidentes Lula, em maio de 2004, e Dilma Rousseff, em abril de 2011.
A parceria estratégica abrangente entre o gigante asiático e o gigante do Cruzeiro do Sul, para além das áreas econômica e comercial, se expressaram também no plano geopolítico, com a defesa por ambos os países do multilateralismo, do diálogo, da valorização da ONU, da paz e da democratização das relações internacionais.
Igualmente, os dois povos venceram a distância geográfica, e foram capazes de se aproximar também nos planos educacional, cultural e civilizacional, forjando uma relação madura e sólida.
Atualmente, a par das relações econômicas e comerciais, a China tem cooperado com o Brasil no enfrentamento da pandemia da covid, fornecendo vacina e o Insumo Farmacêutico Ativo.
A política externa chinesa de proporcionar um futuro compartilhado para toda a humanidade, preconizada pelo Presidente Xi Jinping, pode favorecer também o desenvolvimento econômico e social do Brasil e fortalecer ainda mais a amizade entre os dois países e povos.
A posição hostil do governo de Jair Bolsonaro está em contradição com a tendência histórica, de fortalecimento cada vez maior das relações entre a China e o Brasil.
(*) Jornalista, editor do Resistência, membro do Comitê Central e Comissão Política Nacional do PCdoB, coordenador de Solidariedade Internacional