Opinião
A entrega do Itamaraty e a solidariedade internacional
Diante do ultraje e do despojo de milhões de brasileiras e brasileiros de seus votos e do projeto de governo, atuação internacional e futuro nacional que elegeram, o Ministério das Relações Exteriores, tomado pelo tucano José Serra, a convite de Michel Temer, emitiu uma nota nesta sexta-feira (13) para condenar aqueles que manifestaram sua solidariedade com a nossa luta contra o golpe. Inaugura-se assim a ignomínia de uma reviravolta em nossa diplomacia.
Por Moara Crivelente*
Não é coincidência que a infame nota do Itamaraty, um dia após a usurpação de um governo democraticamente eleito por um arremedo de provisão conformado por tecnocratas, oligarcas e fichas sujas da direita mais conservadora, tenha condenado especificamente a Venezuela Bolivariana, Cuba socialista, Bolívia, Equador e Nicarágua, assim como a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América/Tratado de Cooperação dos Povos (ALBA/TCP), que representam a dignidade de governos progressistas e se recusam a vender suas pátrias ou lotear a América Latina enquanto quintal estadunidense, ou de multinacionais exploradoras.
Em eventos internacionais ou manifestações de solidariedade ao povo brasileiro, ouve-se que a situação no Brasil é preocupante para todo o mundo, principalmente para os povos que, em seus países e continentes, também lutam pela dignidade e pelos direitos mais essenciais. Ouve-se que a América Latina e o Caribe têm sido um sendeiro para movimentos que lutam pela paz e pela justiça, contra a exploração e arrochos anti-crise, pela soberania popular e por um avanço progressista.
Entretanto, no Brasil, na Venezuela, na Argentina, no Paraguai, no Equador e na Bolívia, a reação das elites conservadoras e da oligarquia, fiéis ao imperialismo estadunidense, mostra virulência e artimanha, informada pelas estratégias político-militares do patrão nortenho, entendendo que um golpe militar de violência direta contra o governo não cabe mais. São várias as teses dos “golpes suaves” ou “guerras híbridas” que se desenrolam a partir de novas técnicas para velhas estratégias.
A nota do Itamaraty diz que os países mencionados – que como o Brasil governado por Lula rejeitaram o projeto estadunidense Aliança de Livre-Comércio das Américas (Alca) – “se permitem opinar e propagar falsidades sobre o processo político interno no Brasil”. Não parecia ser esse o espírito quando a atrapalhada delegação tucana e cia. tentou visitar os “presos políticos” da direita criminosa na Venezuela, responsáveis pela tentativa de golpe que causou as mortes de vários manifestantes em 2015. Mas como mostra a nota, que pode ser consultada aqui, todo o empenho está na tentativa de fazer um golpe de Estado se passar por legítimo, em “absoluto respeito às instituições democráticas e à Constituição federal.” A ladainha é conhecida.
O discurso do vice-presidente Michel Temer após a consumação do golpe, assim como a recente coluna da senadora Marta Suplicy (PMDB-SP) na Folha de S.Paulo, buscaram entoar um canto de pacificação, como quem diz a um ferido de morte pela injustiça que aceite o seu destino. Parecem não conhecer o povo brasileiro, calejado nas ruas, agora para denunciar esta infâmia e cujo apelo foi respondido por incontáveis movimentos sociais, meios de comunicação e governos estrangeiros. E se não nos conhecem, quem acham que vão governar?
Estejamos atentos: o estado de exceção montado para fantasiar de legítimo o processo de impeachment e para alegar a proteção da segurança contra a “desordem” – leia-se, protestos – não terá limites. Além disso, o pseudo ativismo jurídico manipulado desde o exterior, empenhado por escolhas políticas e interesseiras, perseguindo uns, protegendo outros, arrisca nos representar outra vez como uma “República das Bananas”, um termo inaceitável cujas características os governos Lula e Dilma enfrentaram, determinados, para o desgosto destes que agora buscam criminalizá-los. Também não é coincidência que entre os seus primeiros atos Temer tenha extinto a Controladoria-Geral da União, que tinha autonomia na fiscalização.
O projeto é o de uma república de oligarquias abastecidas de favores, dirigida por corruptos, onde a impunidade é o que funciona mais eficientemente, assim como a subserviência ao imperialismo. Está à frente do Ministério de Relações Exteriores alguém sem carreira diplomática – uma novidade no Itamaraty – cujo projeto mais sólido para o Brasil é a entrega da sua empresa e de seus recursos mais estratégicos, de afirmação de uma soberania rica em tecnologia desenvolvida por nós mesmos, a Petrobras.
Mas os brasileiros e as brasileiras não serão pacificados ou apaziguados diante da injustiça de uma perseguição hipócrita do governo e das ruas, onde o fascismo é crescente. E nesta resistência, contamos, mesmo, com a solidariedade e o apoio de forças democráticas, progressistas e cientes da injustiça e do caráter criminoso deste golpe fantasiado de processo jurídico.
Preparemo-nos, a nível doméstico, para lutar contra os retrocessos sociais já anunciados e pela recuperação das eleições diretas. Enfrentemos, a nível internacional, o desmantelamento da projeção soberana, ativa e altiva do Brasil, de cooperação e amizade com nações também empenhadas na cooperação e na defesa da sua soberania, ou na sua libertação de regimes opressores, (neo)colonizadores e ocupantes. Fortaleçamos, assim, a solidariedade internacionalista que construímos nos últimos anos.
*Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos e membro do Cebrapaz, assessorando a Presidência do Conselho Mundial da Paz.