Opinião
50 anos sem Che: um olhar sobre a América Latina
“Mais uma vez sinto sob os calcanhares
as costelas de Rocinante” (GUEVARA, 1965)
A epígrafe acima provém da carta enviada por Che Guevara a seus pais no ano de 1965, quando despedia-se de Cuba para lançar-se em mais uma jornada revolucionária do continente latino-americano.
Por Mateus Fiorentini*
Como o mesmo Ernesto previra, aquela fora a última carta de despedida que o revolucionário argentino escreveria aos pais. No dia 08 de outubro de 1967 o exército boliviano, com suporte do governo norte-americano e da CIA, o capturam nas selvas deste país, executando-o no dia seguinte. Além de seu exemplo combatente e sua firmeza de princípios, Guevara deixou um conjunto de contribuições para o debate político, ideológico e teórico que vão além da perspectiva do foco guerrilheiro. Aludindo aos 50 anos da morte de Che, apresentar, ainda que de maneira simples e panorâmica, alguns aspectos desses aportes de Ernesto é o objetivo do presente texto.
Em primeiro lugar, das rotas traçadas por Ernesto Guevara pelo continente latino-americano, é importante destacar a sua passagem pelo Peru. É no país andino que o médico argentino entrara em contato com a obra de José Carlos Mariátegui que exercera influência considerável na sua compreensão acerca da trajetória e da realidade da América Latina. Dialogando com o marxista peruano, Guevara compreendia a presença do latifúndio como marca característica das sociedades latino-americanas, resultado da herança do período colonial. Entendia a grande propriedade rural como “la base del poder económico que sucedió a la gran revolución libertadora del anticolonialismo del siglo pasado” (GUEVARA, 1961. pg 407).
Referia-se as guerras de independência ocorridas no século XIX identificando que estas não promoveram a superação das bases que constituíram o latifúndio no eixo central da dinâmica econômica das sociedades latino-americanas. Por isso, via na luta pela terra o elemento que permitiria superar a herança colonial e a opressão social ao mesmo tempo. Esses elementos, aliados as condições precárias de vida e a superexploração do trabalho, das minas e dos campos que Ernesto encontrara em cada lugar do continente que percorrera, levaram o comandante a destacar a capacidade revolucionária do campesinato na América Latina. Nesse sentido, em “Táctica y estrategia de la Revolución Latinoamericana”, de 1962, Guevara afirmou:
(…) la gran masa libra su sustento trabajando como peones em las haciendas por salarios misérrimos, o labran la tierra em condiciones de explotación que nada tienen que envidiar a la Edad Media. Estas circustancias son las que determinan que en América Latina la población pobre del campo constituya una tremenda fuerza revolucionaria potencial. (GUEVARA, 1962. pg 502)
Não obstante, embora atribuísse um caráter agrário, além de anti-imperialista, da revolução no continente e aos camponeses a força social da revolução, identificava a necessidade da “dirección revolucionária y política de la clase obrera y de los intelectuales revolucionarios” (GUEVARA, 1962. pg 502).
Quanto as características das classes dominantes da região, entendia que em muitos países do chamado Terceiro Mundo estabeleceram-se contradições entre alguns setores das elites locais e o imperialismo. Para ele, tal processo ocorrera devido a competição desigual, as dinâmicas impostas pelo Imperialismo e à herança colonial que geraram as condições que definem grande parte dos países latino-americanos como “subdesenvolvidos”. Estes estariam relegados ao destino imutável de serem países “del monocultivo, los del monoproducto, los del monomercado” (GUEVARA, 1961) Em seguida complementa: “Un producto único cuya incierta venta depende de un mercado único que impone y fija condiciones, he aqui la gran fórmula de la dominación económica imperial” (GUEVARA, 1961)
Para Ernesto tal condição impunha uma realidade dura aos países da América Latina que não permitira aos mesmos desenvolver um mercado plenamente próprio além da posição de fornecedor de matérias-primas. Assim, para Che aquelas experiências de desenvolvimento nacional, baseado na exportação de produtos primários deveriam ser definidos como “colonialismo económico” (GUEVARA, 1970). Nesse contexto, ainda que indicasse a existência de contradições entre as elites nativas e as burguesias dos países centrais, não identificava nos primeiros condições para dirigir um processo que conduzisse à uma verdadeira independência. Tal interpretação partia do entendimento de que a posição subalterna das classes dominantes nativas, em relação às burguesias das grandes potências capitalistas, impedia a perspectiva de desenvolvimento plenamente soberano. Mais que isso, acreditava que a suposta burguesia nacional não titubearia em aliar-se ao Imperialismo e ao latifúndio para frear o projeto de libertação nacional. Segundo Guevara, “temén mas a la revolución popular, que a los sufrimentos bajo la opresión y el dominio despótico del imperialismo que aplasta a la nacionalidad, afrenta el sentimento patriótico y coloniza la economia” (GUEVARA, 1961. pg 412).
Além disso, é pertinente destacar o debate defendido por Che Guevara quanto aos caminhos para o socialismo. Via de regra o mesmo é associado automaticamente à luta armada e ao foco guerrilheiro, perspectiva desenvolvida pelo mesmo e, principalmente pelo francês Regis Debray cuja influência expandiu-se por inúmeras partes do continente. Devido as condições históricas e conjunturais constituídas na América Latina, o argentino não encontrava muitas possibilidades para promover o trânsito pacífico ao socialismo. Porém, procurava fazer uma leitura livre de esquematismos, dogmas ou modelos pré-concebidos. Considerava, assim, a inexistência de caminho único para chegar ao socialismo ao mesmo tempo que apontava para a impossibilidade de subestimar as distintas esferas e dimensões da luta política exercida pelo povo por meio de “todas las vias posibles” (GUEVARA, 1970). Sobre esse tema afirmou:
“Seria un error imperdonable desestimar el proyecto que puede obtener el programa revolucionário de un proceso electoral dado; del mismo modo que seria imperdonable limitarse tan sólo a lo electoral y no ver los outros medios de lucha, incluso la lucha armada.” (GUEVARA, 1961)
Assim, ainda que defendesse a perspectiva do foco guerrilheiro, e este como a única alternativa para chegar ao socialismo, chamou a atenção para a necessidade de se esgotar “hasta el último minuto la posibilidad de la lucha legal dentro de las condiciones burguesas” (GUEVARA, 1962).
O debate desenvolvido na região acerca das distintas formas de luta, caminhos adotados para chegar ao socialismo foi intenso na região e a perspectiva do foco guerrilheiro influenciou diversas organizações do continente. Rodney Arismendi, Secretário-Geral do Partido Comunista do Uruguai (PCU), apoiou-se nas palavras de Che para criticar algumas experiências onde adotou-se o foquismo como perspectiva de luta. Considerava que em alguns casos reproduzia-se uma visão esquemática do pensamento desenvolvido por Che. É possível dizer que a interpretação do deputado platino está, em certa medida, influenciada pelo contexto uruguaio das décadas de 60 e 70, que contava com a presença do Movimento de Libertação Nacional (MLN – Tupamaros). Sem embargo, o uruguaio entendia que “muitos desses movimentos, em última instância, o seu pensamento revolucionário era vitalmente voluntarista.” (ARISMENDI, 1970). Ainda nesse debate, o dirigente comunista afirmou que:
(…) nenhum método, nenhuma concepção, nenhum exemplo de imaginação ou de iniciativa, pode substituir em si mesmo o processo natural de convicção e desenvolvimento do movimento revolucionário de massas. (ARISMENDI, 1977. pg. 96) (1)
Assim sendo, para o dirigente uruguaio o caminho através do foco guerrilheiro agregou-se à vasta gama de possibilidades e vias de aproximação da revolução socialista experimentadas durante a metade do século XX. Arismendi compreendia que a “guerra de guerrilhas deve voltar a ser o que realmente é, um método e não uma doutrina.” (ARISMENDI, 1977). Assim, defendia que este não poderia substituir a mobilização de massas e a direção política da revolução. Nesse sentido, é possível afirmar que a concepção desenvolvida por Guevara não pode ser reduzida simplesmente à estratégia militar. Sem deixar de considerar que o argentino, sobre a possibilidade do transito pacífico ao socialismo na América Latina, afirmou: “en la gran mayoria de los casos, no es posible” (GUEVARA, 1970).
A guisa de concluir esta exposição simples e panorâmica de alguns conceitos, linhas de ação e pensamentos desenvolvidos por Che Guevara é fundamental destacar a perspectiva continental da luta pelo socialismo. O brinde por “Peru e por América Latina unida” (DIÁRIOS… 2004) representado no filme “Diários de Motocicleta” por ocasião da comemoração de seu aniversário, expressa o salto de qualidade no seu entendimento acerca das características unidade e da luta anti-imperialista na região. Da mesma forma que a noção de que, do Rio Bravo à Patagônia, a América Latina está composta de “uma só raça mestiça” (DIÁRIOS… 2004) delineiam o pensamento do revolucionário argentino quanto às características que marcam o continente. Anos mais tarde, já consolidado em sua condição de líder revolucionário, guerrilheiro anti-imperialista e internacionalista, assim como Comandante da Revolução Cubana, Che identificara singularidades comuns aos países da América Latina que distinguem a região de outros continentes:
En este continente se habla prácticamente una lengua, salvo el caso excepcional del Brasil, com cuyo pueblo los de habla hispana pueden entenderse, dada la similitud entre ambos idiomas. Hay una identidad tan grande entre las clases de estos países que logran una identificación de tipo ‘internacional americano’, mucho más completa que en outros continentes. Lengua, construmbres, religión, amo común, los unen. El grado y las formas de explotación son similares em sus efectos para explotadores y explotados de una buena parte de los países de Nuestra América. (GUEVARA, 1967. pg. 592)
Che Guevara transformou-se em símbolo de rebeldia, exemplo de valores e princípios verdadeiramente revolucionários. Inspirado por ele, ao falar sobre como deveriam ser as futuras gerações de cubanos, Fidel disse: que sejam como o Che! Nesse quesito seguirá movendo gerações de lutadoras e lutadores de todo o planeta na busca de um mundo de justiça e paz. Mas também, fica aberta a porta para conhecer mais das contribuições de Ernesto, bem como o conjunto do pensamento produzido na região acerca da realidade da América Latina.
* Mateus Fiorentini, Licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP)
Referências bibliográficas
AMÉRICAS, Casa de Las (Org.).Ernesto Che Guevara – obras (1957-1967).Havana: Ediciones Casa de Las Américas, 1970. 698 p.
ARISMENDI, Rodney. A Revolução Latino-Americana. Lisboa: Editora Avante, 1977. 255 p.
DIÁRIOS de Motocicleta. Direção de Walter Salles. S.i.: Sound Ford Pictures, 2004. Color. Legendado.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete Ensayos de la Realidad Peruana. Caracas: Fundación Ayacucho. 2007
PAULINO NETO, Analdino Rodrigues (Ed. Che Guevara cartas 2. ed. São Paulo: Edições Populares, 1982. 140 p.
PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela História da América Latina.São Paulo: Editora Contexto, 2016. 206 p
(1) Arismendi cita Che Guevara quando se refere as condições para a luta armada onde governos de turno preservam qualquer aparência de democracia: “(…) o nascimento da guerrilha é impossível de produzir-se por não se terem esgotado as possibilidades da luta política.” – ARISMENDI, Rodney. A Revolução Latino-Americana. Lisboa: Editora Avante, 1977. pg. 96