Brasil-China

A crise brasileira e as perspectivas para as relações Brasil-China

10/06/2016

A espiral de crise que o Brasil enfrenta causa profundas incertezas no país e em seus parceiros globais. Internamente, as dificuldades econômicas e políticas do país foram apenas potencializadas com o governo interino de Michel Temer. Internacionalmente, há apreensões acerca dos caminhos a serem adotados pelo chanceler José Serra.

Por Diego Pautasso* e Gaio Doria**

O governo interino de Temer não retomou a confiança, como atestam a popularidade inferior à da Presidenta afastada e o desempenho das bolsas e do dólar, nem logrou a propalada “união” nacional. Ao contrário, as principais forças vivas da sociedade, intelectuais, juristas, movimentos sindicais e operários, estudantes e artistas têm realizado sistemáticas manifestações por todo o país. O caráter conservador deste acentuou-se através da eliminação de ministérios importantes como Cultura, das Comunicações, do Desenvolvimento Agrário, das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, o que sinaliza o viés conservador e a propensão de cindir ainda mais o país.

Além disso, em poucas semanas de governo, o ministro do Planejamento e principal articular político, Romero Jucá (e seus dois indicados no IBGE e IPEA) e o ministro da Transparência, Fabiano Silveira, foram exonerados em razão de escutas que revelavam as maquinações políticas que levaram ao golpe, expondo as vísceras da vida política nacional. Paralelo a isso, tem ocorrido pressão para a queda do chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Fábio Medina Osório, além da restituição do cargo de Ricardo Melo na Empresa Brasileira de Comunicações por decisão do Supremo Tribunal Federal. Ademais, quase que diariamente aparecem citações envolvendo ministros em operações da Justiça, sendo que grande parte já responde processo ou é investigado em alguma ação criminal. Pior, o centro decisório do governo é justamente o mais comprometido em denúncias de corrupção.

Em âmbito internacional, a mídia internacional corrobora majoritariamente com a tese do golpe e denuncia a baixa legitimidade do governo interino. Os receios diante dos processos que levaram ao afastamento de Dilma são percebidos pelo fato de diversos chefes de Estado não terem ligado para o reconhecimento protocolar do novo governo ou optado por manter um distanciamento. No parlamento europeu, um grupo de eurodeputados exige que a União Europeia não negocie com o governo Temer. Além disso, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, reitera que o ocorrido no país foi golpe; e sua Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) publicou um comunicado expressando preocupação com possíveis “retrocessos”. A mesma reação ocorreu por parte do Secretário-Geral da UNASUL, Ernesto Samper, e dos governos da Venezuela, Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua, assim como da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América/Tratado de Comércio dos Povos (ALBA/TCP). Até o Papa Francisco manifestou preocupação com os ‘golpes brancos’ na América do Sul e o risco de escalada de conflitos sociais em países como Brasil, Venezuela, Bolívia e Argentina.

Diante desse quadro, as medidas do chanceler interino Serra causam apreensão. Primeiro, as duas notas do MRE repudiando as declarações de Samper da UNASUL e dos governos vizinhos revelam o novo viés da condução da diplomacia para a região. Segundo, a decisão do Itamaraty de instruir embaixadores a combater ativamente a tese do golpe é reveladora da fraca legitimidade de seu governo e das novas direções da política externa brasileira. Terceiro, outra medida sintomática das escolhas internacionais, foram as notícias relacionadas à encomenda de estudo sobre os custos das embaixadas na África e no Caribe, assim como a disposição prioritária do chanceler interino de participar de reunião da OCDE (onde, ironicamente, foi amplamente criticado). Há, inegavelmente, uma mentalidade colonizada por parte do governo interino, manifesta no silêncio diante de grandes embaixadas em países inexpressivos da Europa e na incapacidade de compreender o sentido estratégico da região e do Atlântico Sul-África para o país, seja em âmbito econômico-comercial e/ou diplomático-securitário.

Os chineses têm, tradicionalmente, adotado uma estratégica pragmática na formação e consolidação de parcerias, mesclando comportamento cauteloso com o princípio diplomático de não-intervenção em assuntos internos. De todo modo, a crise brasileira atual representa um contexto de grandes incertezas, cujos desdobramentos se farão sentir na atuação internacional do Brasil e no relacionamento com seu principal parceiro comercial, a China. Assim, as relações sino-brasileiras se encontram diante de perspectivas distintas.

Durante os governos Lula e Dilma se construiu uma sólida parceria estratégica com a criação da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN-2004), a assinatura dos Planos de Ação Conjunta 2010-2014 (PAC-2010) e 2015 a 2021 (PAC-2015) e a elevação de “Parceria Estratégica” (1993) para “Parceria Estratégica Global” (2012) e o Plano Decenal de Cooperação (2012-2021). Ademais, a China tornou-se o principal parceiro comercial do país em 2009, passando de US$ 3,2 bilhões para US$ 66,3 bilhões (2001-15), além da formatação de sólidas parcerias a partir do BRICS e do ingresso brasileiro no Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento (2015). Sendo assim, o governo encabeçado pelas forças de centro-esquerda foi um parceiro importante em diversas agendas de interesse da China na arena internacional.

Não há dúvidas de que o governo interino está interessado em impulsionar o comércio e atrair investimentos chineses para o país. E certamente sem a mesma disposição de defender a indústria nacional, como as de do petróleo e construção civil, com suas respectivas reservas de mercado e exigências de conteúdo nacional, bem como menores barganhas no que se refere a acesso a mercado e contrapartidas para investimentos externos. Com efeito, para o país asiático as forças que sustentam o governo interino podem representar ganhos pragmáticos de curto prazo. Contudo, tais ganhos podem ser ofuscados pela tendência do governo Temer fortalecer o eixo Sul-Norte da diplomacia brasileira, diminuir a ênfase dada ao BRICS e priorizar parcerias com os EUA e a União Europeia, incluindo acordos de livre comércio com países do centro do sistema internacional. Assim, embora o comércio bilateral não deva sofrer impactos, os projetos estratégicos bilaterais poderão acabar nas mãos de terceiros.

Note-se que no documento elaborado pela chancelaria interina para lançar as bases da nova “velha” política externa, a China aparece no penúltimo ponto, após devidas menções de aproximação aos EUA e à Argentina neoliberal. Isto frente aos fatos de que a China é o principal parceiro comercial do Brasil e a diplomacia mora nos detalhes, é um claro sinal da verdadeira importância que o governo interino dispensa a ao país oriental. Em suma, é muito provável que os ganhos chineses, na eventual permanecia do governo interino, tendam a assumir o lugar da aproximação e consolidação de uma parceria estratégica com o Brasil que, não sem contradição, buscavam trabalhar para a construção de uma nova ordem multipolar.

 

* Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política, professor de Relações Internacionais da ESPM Sul e UNISINOS, autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria, editora Juruá, 2011. E-mail: dgpautasso@gmail.com

** Gaio Doria é doutorando na Universidade do Povo da China em Beijing. Email: gaiodoria@gmail.com

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