Nos últimos dias, o secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil, José Reinaldo Carvalho, concedeu entrevistas a diversos veículos de comunicação ligados a partidos e organizações comunistas e revolucionários de vários países da América Latina, Europa, África e Ásia. Publicamos aqui a síntese das principais perguntas e respostas.
Que avaliação faz das manifestações contra a destituição de Dilma Rousseff e em favor da democracia? Que razões os levam a qualificar o processo de impeachment de golpe de Estado?
José Reinaldo Carvalho: A Constituição da República, aprovada em 1988 por uma Assembleia Constituinte, que funcionou na sequência da superação da ditadura, estabeleceu o impeachment como mecanismo juridicamente válido para destituir o (a) presidente da República. O pressuposto para isto é que o mandatário incorra em crime de responsabilidade. Ora, os autores do processo de impeachment não apresentaram indícios nem provas de que a presidenta Dilma Rousseff tenha incorrido em crime de responsabilidade. Acusam-na de ter falhado na execução do Orçamento governamental porque tomou medidas administrativas e financeiras extraordinárias para assegurar, num momento de restrições monetárias decorrentes das dificuldades econômicas, a realização das políticas públicas e sociais e financiar o desenvolvimento econômico. Assim, as motivações do processo de impeachment são políticas, um pretexto para, sob a envoltura de uma argumentação jurídica, derrubar a presidenta da República. A destituição da mais alta mandatária do país sem que tenha cometido crime de responsabilidade é, assim, uma forma de golpe político, golpe de Estado. Por isso dizemos – e o fazemos também como denúncia – que está em curso um golpe de Estado, um golpe que se faz por etapas, e está em plena execução. Obviamente, distinto do de 1964, pois é outra a conjuntura mundial, assim como é diferente o contexto político nacional. São de outra natureza também os métodos. Em 1964 realizou-se um golpe militar. Agora, trata-se de um golpe institucional e midiático, em que setores do aparato policial e judicial agem em conluio com a oposição neoliberal e conservadora. Quanto às manifestações de massas no último dia 31 de março, como as do dia 18, foram gigantescas e revelam a capacidade de mobilização das forças populares, assim como a profunda consciência democrática do povo brasileiro.
Quais são as origens da crise política?
José Reinaldo Carvalho: A crise política atual tem como origem mais imediata o fato de a oposição neoliberal e conservadora, representada pelos partidos da direita contemporânea, liderada pelo PSDB, que tem suas ramificações na mídia monopolista privada, em setores do aparato policial e judiciário, não ter aceitado a derrota pela quarta vez consecutiva, nas últimas eleições presidenciais de outubro de 2014. Essa oposição imaginava que conseguiria naquelas eleições interromper o ciclo progressista inaugurado no país com a primeira eleição de Lula, em 2002, que, malgrado as lacunas, fez com que o país avançasse na realização de importantes mudanças políticas e sociais, no exercício da solidariedade internacional e na construção de uma América Latina independente. Vista de uma perspectiva mais larga, a crise política atual é também a expressão das contradições estruturais e dos conflitos de fundo da sociedade brasileira. É a expressão de uma luta entre dois caminhos, da encruzilhada histórica do país. O caminho que pode levar o Brasil a se afirmar como nação democrática, independente e socialmente justa, em antagonismo ao que conduz à manutenção dos privilégios das classes dominantes, da dependência aos potentados internacionais, ao subdesenvolvimento e vigência de um poder político antidemocrático.
Não obstante, a corrupção é uma realidade
José Reinaldo Carvalho: Efetivamente. A corrupção está entre os males estruturais do sistema político, uma enfermidade crônica, para cujo combate é necessária uma postura revolucionariamente ética das forças progressistas no exercício do governo, além de uma posição política, administrativa e judicial enérgica. É preciso dizer que, independentemente dos erros que se tenham cometido, foi durante o período de governo do Partido dos Trabalhadores (PT) que os órgãos de fiscalização, controle e combate à corrupção mais funcionaram, e com plena autonomia. Os partidos golpistas são os maiores corruptos do sistema político do país. A luta contra a corrupção feita por eles é uma bandeira esfarrapada. É uma luta instrumentalizada com fins políticos.
A justiça está acima de qualquer suspeita?
José Reinaldo Carvalho: Absolutamente, não.
Os partidos de direita não são os únicos na ofensiva contra a presidenta. O PMDB, aliado do governo, acaba de romper. Qual o objetivo visado e em quem o PT ainda pode se apoiar?
José Reinaldo Carvalho: Há muito tempo, o PMDB não é uma força progressista. Sua presença no governo obedece aos imperativos de conveniências políticas – estar próximo do poder para obter vantagens e melhores condições para desenvolver políticas de clientela. Coisas do sistema político-partidário brasileiro, ainda precariamente sedimentado do ponto de vista político-ideológico. O PMDB tem em seu interior uma forte ala de centro-direita, que no momento é prevalecente. Para evitar o impeachment, o governo além de se apoiar na força do povo nas ruas e numa miríade de manifestações que têm ocorrido de setores organizados da população, desde as massas trabalhadoras, profissionais liberais, intelectualidade acadêmica, mundo cultural-artístico, meios jurídicos e desportistas, terá que contar também, no âmbito estritamente parlamentar, com o respaldo de micropartidos e em parlamentares individuais, independentemente da posição de seus partidos.
Se a presidenta Dilma superar o impeachment, como poderá governar até o final do mandato?
José Reinaldo Carvalho: Caso o governo vença a batalha, será necessário promover uma repactuação política, cujo pressuposto será a mobilização popular e a união das forças democráticas e progressistas, a partir de um programa de emergência, voltado para superar a crise econômica e impedir que seus efeitos atinjam os direitos e conquistas do povo.
O que se pode prever em caso de deposição da presidenta?
José Reinaldo Carvalho: Se a presidenta for deposta, o governo que emergirá, eventualmente sob a liderança do vice-presidente da República, Michel Temer, que é também o presidente do PMDB, a instabilidade política se agravará. Será um governo de traição nacional, com tendências autoritárias, malgrado a fachada de constitucionalista que Michel Temer exibe; governo antipopular, comprometido com uma agenda elaborada segundo o figurino do capital monopolista-financeiro nacional e internacional. Por óbvio, haverá uma luta aberta, uma oposição enérgica por parte do PT, do PCdoB, demais partidos progressistas e do movimento social contra essas forças golpistas que formarem o governo. Em qualquer cenário, o Brasil viverá momentos tempestuosos, que exigirão lucidez, descortino, amplitude e espírito de resistência e luta dos partidos de esquerda.
Por que o PT, que venceu quatro eleições presidenciais seguidas, jamais conseguiu obter uma maioria confortável nas duas casas congressuais?
José Reinaldo Carvalho: Isto é o reflexo de uma correlação de forças ainda bastante desfavorável para as forças progressistas e é revelador do enorme poder político das classes dominantes. É preciso lembrar que o Brasil é uma República federativa, e os poderes oligárquicos são ainda muito fortes nas unidades (estados) que compõem a Federação. Outrossim, é preciso acentuar que os poderes econômicos exercem forte influência nas campanhas eleitorais. O financiamento das campanhas eleitorais é privado e empresarial. Aliás, esta é uma das fontes da corrupção.
É possível uma reforma do sistema político?
José Reinaldo Carvalho:A reforma do sistema político é uma das reformas estruturais indispensáveis e urgentes. Não se reuniram ainda forças nem convicções para fazê-la. Mas é evidente que o sistema político atual faliu e já não serve à luta democrática e social das forças progressistas. Reformar o sistema político é uma das tarefas mais exigentes e urgentes para alcançar a mais ampla e profunda democratização do Brasil.
Que implicações a crise tem para a ação do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)?
José Reinaldo Carvalho:O PCdoB, ao lado do PT, outros partidos progressistas e os movimentos sociais, respalda o governo da presidenta Dilma, rechaça o golpe, está empenhado no êxito das manifestações populares em defesa da democracia e imerso numa intensa atividade política no âmbito das casas legislativas para evitar o impeachment. O PCdoB considera que a batalha política em curso tem sentido estratégico, e exercerá forte impacto sobre a luta dos trabalhadores e do povo brasileiro, assim como de toda a América Latina, por sua emancipação nacional e social. [:en]Recently, the secretary of Politics and International Relations of the Communist Party of Brazil (PCdoB), José Reinaldo Carvalho, gave interviews to various media linked to communist and revolutionary parties and organizations from numerous countries in Latin America, Europe, Africa and Asia. We publish here a synthesis of the main questions and answers.
How do you evaluate the demonstrations against Dilma Rousseff’s destitution and in favour of democracy? Which reasons support the classification of the impeachment process as a coup?
José Reinaldo Carvalho: The Republic’s Constitution, approved in 1988 by a Constitutional Assembly, in place after the dictatorship was overcome, established the impeachment as a judicially valid mechanism to destitute the President of the Republic. The point of departure for that is that the President commits a responsibility crime. Well, the authors of the impeachment process did not present evidences nor proofs that President Dilma Rousseff has committed any responsibility crimes. They accuse her of having failed in the execution of the Government’s Budget because she took extraordinary administrative and financial measures to assure, in a moment of monetary restrictions stemming from economic hardships, the realization of the public and social policies, and to finance the economic development. Therefore, the motivations for the impeachment process are political, a pretext to, under the cover of a judicial argument, overthrow the Republic’s President. The destitution of the highest chief in the country, when she did not commit a responsibility crime is, thus, a form of political coup, a coup d’état. This is why we say – and we do so as a form of denunciation – that a coup d’état is under way, a coup built in phases, and it is in outright execution. Obviously, this time it is different from the 1964 coup, since there is a different context in the world, and different as well is the national political context. The methods are also of a different nature. In 1964, a military coup was committed. Now, this is an institutional and media coup, in which sectors of the police and judicial apparatus act in a plot with the neoliberal and conservative opposition. As for the massive demonstrations in March 31, as well as those of March 18, they were huge and showed the capacity for mobilization of the people’s forces, as well as the profound democratic consciousness of the Brazilian people.
Which are the origins of the political crisis?
José Reinaldo Carvalho: The current political crisis has its origin, more immediately, the fact is that the neoliberal and conservative opposition – represented by the contemporary right wing’s parties, led by PSDB. It has its ramifications in the private and monopolized media, in sectors of the police and judicial apparatus – did not accept the fourth and consecutive defeat, in the last Presidential elections, in October 2014. This opposition imagined it could, in those elections, stop the progressive cycle inaugurated in the country with Lula’s first election, in 2002, which despite the gaps, enabled the country to advance in achieving important political and social changes, in the exercise of the international solidarity and in the construction of an independent Latin America. Viewed from a broader perspective, the current political crisis is also an expression of the structural conditions and the deep conflicts in the Brazilian society. It is the expression of a struggle between two paths, of the country’s historical crossroad. The path that can take Brazil to affirm itself as a democratic, independent and socially just nation, in antagonism with that which conduces to the maintenance of the privileges of the dominant classes, of the underdevelopment and an undemocratic political power.
However, corruption is a reality.
José Reinaldo Carvalho: Indeed. Corruption is among the political system’s structural defects, a chronic disease, and combating it requires political, administrative and judicial energetic positioning. It is necessary to say that, despite the mistakes committed, it was during the government of the Workers’ Party that the supervision, control and fight against corruption have worked the most, and with complete autonomy. The coup parties are the most corrupt in the country’s political system. The fight against corruption undertaken by them is a feeble slogan. It is a struggle created for political ends.
Is justice above any suspicions?
José Reinaldo Carvalho: Absolutely, not.
The right-wing parties are not the only ones in the offensive against the President. PMDB, allied to the government, has just left it. What is the goal and who can PT still count on?
José Reinaldo Carvalho: PMDB has not been a progressive force anymore, for a long time. Its presence in the government obeys the imperatives of political conveniences – to be close to power to obtain advantages and better conditions to develop customer policies. Something proper to the Brazilian political and parties’ system, still precariously based on a political and ideological point of view. PMDB has within it a strong centre right wing, which is currently predominant. To avoid the impeachment, it is necessary can count on the people’s strength on the streets and on a myriad of demonstrations pushed forward from organized sectors of society, since the workers’ masses, liberal professionals, academic intellectuals, the cultural and artistic world, judicial and sports spheres. At level of Parliament environment, government should count on the support of micro-parties and of individual parliamentarians, independently of their parties’ positions.
If President Dilma overcomes the impeachment, how will she be able to govern until the end of her mandate?
José Reinaldo Carvalho: If the government wins the battle, it will have to promote a new political pact, which will require the people’s mobilization and the unity among democratic and progressive forces, pushed forward from an emergency program, concerned with surmounting the economic crisis and prevent its effects from hitting the people’s rights and achievements.
What is possible to foresee in case the President is overthrown?
José Reinaldo Carvalho: If the President is overthrown, the government emerging will eventually be under the leadership of the Republic’s Vice President, Michel Temer, who is also PMDB’s President, and the political instability will probably aggravate. It will be a government of national treason, with authoritarian tendencies, in despite of the Constitutional façade Michel Temer displays; an anti-popular government, committed to an agenda elaborated according to the national and international monopolist-financial capital. Certainly, there will be an open struggle, an energetic opposition by PT, PCdoB and other progressive parties, and by the social movement, against these coup forces forming the government. In any scenario, Brazil will live stormy moments, which will require lucidity, unmasking, wideness, and a spirit of resistance and struggle from the leftist parties.
Why the PT, which won four consecutive Presidential elections, could never obtain a comfortable majority in the two Congress Houses?
José Reinaldo Carvalho: This is the reflex of a correlation of forces still too unfavourable for the progressive forces; it reveals the enormous political power of the dominant classes. It is necessary to remember that Brazil is a Federal Republic and that the oligarchic powers are still too Strong in the units (states) composing the Federation. Furthermore, it is necessary to highlight that the economic powers exert Strong influence on the electoral campaigns. The electoral campaigns’ financing is private and entrepreneurial. For that matter, this is one of the sources of corruption.
Is a reform of the political system possible?
José Reinaldo Carvalho: The political system’s reform is one of the indispensable and urgent structural reforms. The forces and convictions to do it are not gathered yet. However, it is evident that the current political system has failed and does not serve the democratic and social struggle of the progressive forces. To reform the political system is one of the most demanding and urgent tasks to achieve Brazil’s broader and deeper democratization.
What implications the crisis has to action of the Communist Party of Brazil (PCdoB)?
José Reinaldo Carvalho: PCdoB, with PT, other progressive parties and social movements, backs President Dilma’s government, rejects the coup, is resolute on the success of the people’s demonstrations defending democracy, and it is deep into political activities in the scope of the Legislative houses to avoid the impeachment. PCdoB considers that the political battle underway has strategic meaning, and it will exert strong impact on the workers’ and the Brazilian people’s struggle, as well as on all of Latin America’s, for their national and social emancipation. This is not only PCdoB’ stance, but also of what I could call responsible left.