Opinião
Religião e laicismo na crise política brasileira – o golpe pentecostal
O processo político de promoção do “impeachment” da Presidente, concretizado neste domingo (17) em Brasília, revelou traços de subordinação da esfera política aos interesses de grupos religiosos, nomeadamente, das igrejas pentecostais. Os comportamentos individuais e de grupo, as estratégias de comunicação (o clima de exaltação, os discursos pseudo-moralistas, a estratégia de diabolização e a histeria, etc.), bem como as formas grosseiras de pressão sobre os parlamentares, colocaram no teatro político parlamentar as práticas correntes do discurso religioso (como ocorreu com o recente destempero público da jurista Janaina Paschoal, apresentando-se em transe em ato político).
Por Alexandre Weffort*, de Lisboa para o Resistência
A Câmara do Congresso transformou-se num circo e o espetáculo mostrou da política uma face degradada e degradante. A superficialidade dos discursos proferidos, com recurso sistemático a argumentos descabidos face à questão jurídica ou mesmo política em apreço, foi dominante.
A essência do processo de “impeachment” não foi, em boa verdade, minimamente tratada na sua matéria jurídica. Apenas serviu de pretexto na mobilização dos votos parlamentares necessários à aprovação do parecer. A pressão da grande mídia cumpriu o seu papel (minuciosamente planeado e executado). E nas suas páginas encontramos os discursos, não somente de propaganda e doutrinação da massa contra o governo federal, mas também, mesmo em matérias de aparente teor científico, de tentativas de branqueamento das contradições mais gritantes, como seja o fato de grande parte daqueles que promovem o “impeachment” em nome da legalidade e da moralidade da vida política – e que alimentam as notícias sistematicamente lançadas contra o governo e sua base de apoio – estarem indiciados nos processos de corrupção.
O processo é, todavia, mais complexo e profundo. Há causas que radicam no descontentamento social da chamada classe média e sua instrumentalização política pelas forças opositoras ao governo, bem como em políticas seguidas pelos governos estaduais e federal. Mas, manifesta-se de forma evidente o peso da estrutura política pentecostal, a tal modo que a natureza do estado laico viu-se comprometida no desempenho dos níveis mais altos do poder legislativo, sendo disso testemunha a forma como decorreu a sessão de votação do relatório que propõe a destituição da Presidente da República eleita. Tratou-se de um golpe político que, utilizando ferramentas constitucionais, se construiu na esfera parlamentar (daí poder ser catalogado de “golpe parlamentarista”), mas que resultou essencialmente condicionado pela ação de grupos que reivindicam uma identidade religiosa como núcleo do seu discurso e ação: tratou-se de um “golpe pentecostal”.
A natureza laica da República foi objetivamente posta em questão, demonstrando que a questão religiosa não tem sido convenientemente abordada a nível político. O fenômeno religioso adquire crescente importância no mundo contemporâneo. O exercício do poder político subalternizado às convicções religiosas está na base de sistemáticos atropelos aos direitos de cidadania (seja qual for o quadrante ou crença). Mas a questão religiosa revela uma natureza contraditória intrínseca. Marx havia assinalado essa natureza ao dizer que “a religião é o ópio do povo”. A frase tomada isoladamente não revela a profundidade do pensamento marxiano acerca da questão religiosa. Na verdade, considerando a religião enquanto “a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a se perder” (ver Marx, “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”), o filósofo antecedia aquela formulação de uma contextualização mais aguda: “A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma”. A dialética inerente à questão religiosa não permite uma abordagem simplista, de mera aceitação ou recusa do conteúdo religioso. Antes requer a compreensão do papel social ambivalente da religião, enquanto “autoconsciência” do homem oprimido e enquanto instrumento de dominação, no quadro das relações sociais, de uma prática simultaneamente emancipadora e opressora (sendo frequentemente apresentada como justificação para conflitos sectários de nível diverso, guerras e violências sobre parcelas da sociedade). Mas, independentemente das contradições assinaladas e das convicções pessoais, ciente das implicações mais profundas da questão religiosa, cabe ao Estado, nomeadamente às instâncias mais altas dos poderes públicos, defender e garantir a natureza laica da República definida no texto constitucional e o seu valor civilizacional.
Alexandre Weffort*, professor, Mestre em Ciência das Religiões e Doutorando em Comunicação e Cultura na Universidade do Minho (Portugal)